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Vacinação lenta, educação adoecida: os interesses contra o ensino presencial

As escolas brasileiras, altamente afetadas pela pandemia, seguem padecendo de seus antigos problemas. Sem condições para a volta do ensino completamente presencial, as modalidades remota e híbrida se consolidam como formas de gerenciar a crise na educação, ainda que os problemas de aprendizado e sociabilidade da juventude sejam claramente agravados.

De um lado da tragédia, famílias destruídas pela carestia, inquietas na busca pela liberação das atividades de cuidados com os filhos a fim de poderem se dedicar ao mercado informal. Do outro, trabalhadores da educação não menos inquietos, amedrontados pelo risco de morte e atribulados com a sobrecarga das novas jornadas de trabalho. Em comum aos dois lados, um carrasco invisibilizado que estala a chibata nas costas da classe operária e sopra intrigas liberais em seus ouvidos. A nós, comunistas, cabe a tarefa de tirar o capuz do carrasco e abrir o caminho para a degola de seu punho chicoteador.

Com o início da pandemia e o fechamento das escolas, os professores se viram imersos em inúmeras rotinas de ambientes virtuais, preenchimentos de formulários, cursos de capacitação no contraturno, enfim, uma infinidade de tarefas, em sua ampla maioria inócuas, que prolongaram as jornadas de trabalho [1]. Os custos de infraestrutura, desde a energia elétrica, passando pela conexão de internet e compras de equipamentos eletrônicos, em muitos casos até mesmo  com os velhos materiais impressos, foram todos transferidos ao bolso do professor. Os alunos, por sua vez, se viram atingidos por esses mesmos custos, frequentemente sem a capacidade de arcar com esse peso, até mesmo passando fome pela falta de merenda escolar, tendo por consequência a drástica elevação dos níveis de evasão. 

Enquanto isso, nem sequer os magros repasses do governo Bolsonaro foram aplicados a nível regional para sanar as demandas escolares, sendo em vez disso aproveitados para vender a ideia de governos bem-sucedidos na gestão da crise, com superávit tão grande na balança econômica quanto no balanço de mortes [2].

Na história do capitalismo, as crises são gestadas com vistas a dilacerar os impulsos organizativos da classe trabalhadora e expandir o grande capital. Contingências históricas como as pandemias – diga-se de passagem cada vez mais comuns frente à devastação ambiental promovida pela irracionalidade do modo de produção capitalista – aceleram esse processo de maneira vertiginosa, especialmente quando a classe trabalhadora se vê desguarnecida de suas formas próprias de organização, tal como é o caso brasileiro em que as direções partidárias e sindicais se encontram desmoralizadas após consecutivas traições de suas direções burocratizadas e rendidas à lógica parlamentar.

Nesse cenário, a educação não poderia deixar de ser um dos setores mais atingidos, já que o Estado lhe impõe um caráter fundamental de formação da mão de obra assalariada, assim desonerando o setor produtivo privado desse custo. Ocorre porém que no período de crise, em especial no capitalismo subdesenvolvido, o exército de reserva é ainda mais abundante, além de que o caráter dependente da economia cada vez mais desnacionalizada, automatizada e exportadora implica em uma menor demanda de trabalhadores com alta qualificação. Por essas razões, no período de crise o refreamento dos ciclos mais básicos de formação escolar pouco afeta a disponibilidade de mão de obra para o grande capital, que pode facilmente suprir suas demandas de mão de obra qualificada com o saldo remanescente do exército de reserva, gozando ainda de ampla possibilidade de escolha entre os perfis de formação débil para os postos de trabalho braçal.

Ora, não havendo a demanda por mão de obra qualificada, por que o Estado faria questão de vacinar a população e reestabelecer o ensino presencial em vez de jogar os custos nas costas dos trabalhadores e estudantes através da instauração de um ensino remoto precário? Essa situação se tornaria insustentável a longo prazo, é claro, já que os cuidados familiares, em especial na fase infantil, são bastantes custosos, além de que em última instância a renovação da mão de obra segue sendo necessária. Entretanto, a contribuição dessa manobra para a economia no orçamento estatal é significativa, abrindo-se as avenidas para gordos investimentos no ano de eleição burguesa que se aproxima, isso tudo sem o ônus que teria uma interrupção no calendário de contrarreformas (marcadamente as reformas previdenciárias regionais e a reforma administrativa).

Diante disso, o posicionamento dos órgãos políticos da classe trabalhadora, em especial dos sindicatos e uniões estudantis, não poderia ser outro senão a intransigente oposição ao tratamento da juventude como mero meio para reprodução do capital, bem como, é claro, da defesa de que os governos utilizem seus recursos para o fornecimento das condições de infraestrutura necessárias ao trabalho do profissional em educação e às jornadas de estudo dos alunos. Tudo isso passa certamente pela questão sanitária, mas não pode se reduzir a ela.

As greves sanitárias surgem como novidade no setor educacional durante a pandemia. Embora em outros setores a insalubridade e outros fatores ambientais tenham motivado diversas greves históricas, os trabalhadores da educação tipicamente entram em greve pela questão econômica/salarial. Seja o estopim econômico ou sanitário, cabe aos sindicatos o papel de utilizar o instrumento da greve como momento pedagógico para apontar mais adiante, isto é, para apontar a transformação da forma social vigente, utilizando-se da greve não só como balcão de negociação com o governo da vez, mas como momento exemplar no qual o tempo é revertido para os propósitos da classe trabalhadora. Nesse sentido, é uma tarefa da direção da classe a formação sobre a situação da educação, diagnosticando seus problemas de ordem organizacional e pedagógica, criticando seus limites dentro do capitalismo, apontando enfim para o exercício revolucionário como única forma de superação do tratamento mercadológico da educação.

O que é notável das greves na educação durante a pandemia é que acertaram na convocação por motivo sanitário, aglutinando a categoria em torno dessa pauta comum em diversos centros urbanos, em alguns casos por centenas de dias, inclusive obtendo relativo sucesso no adiantamento da vacinação. No entanto, com a vacinação em andamento continuam os velhos problemas da educação básica, além dos novos problemas gerados pelo ensino remoto.

A própria questão sanitária não está resolvida, já que um enorme número de escolas continua sem infraestrutura básica, chegando a faltar água e saneamento básico em uma parcela bastante significativa das escolas [3], sem contar a relação com os demais setores envolvidos, tais como transporte, alimentação, etc., a qual gera enorme risco de contaminação. É também notável que muitos profissionais sequer receberam a segunda dose da vacina e a imensa maioria da comunidade escolar, que é composta de alunos, sequer está autorizada a recebê-la, pelo que o número de desligamentos por morte no setor de janeiro a abril de 2021 já apresenta aumento de 128% em relação ao mesmo período do ano anterior, constituindo o maior número bruto desse tipo de desligamento entre todos os setores de trabalho (1479 mortes registradas), uma taxa 39% maior que a média geral [4].

Aos problemas sanitários sem resolução, soma-se o avanço da agenda burguesa no terreno pedagógico. Não sendo mais possível conter os alunos na modalidade remota, dada a repercussão negativa pela completa desestruturação dessa modalidade que seria de fato necessária em momento no qual não existia vacina, além da completa desassistência às famílias trabalhadoras que perdem enorme fatia da renda mensal com os cuidados domésticos, entra em cena o modelo híbrido. Além de permitir às redes particulares de educação a recuperação de parte dos seus alunos/mensalidades, tal modelo também cumpre, ainda que agora de forma parcial, o papel de “desonerar” o Estado dos custos da educação, sendo fortemente acompanhado do discurso de que as inovações tecnológicas resolverão os problemas de aprendizado – de fato, não podemos negar que o WhatsApp dos professores está mais popular do que nunca!

Por trás desse discurso está contida a possibilidade de substituição gradual do profissional da educação por equipamentos, tal como já vem acontecendo no ensino superior à distância através das aulas gravadas, sistemas automatizados de correções e assim por diante, mas também a implantação do modelo apostilar de educação, cujo conteúdo tecnicista deve ser seguido à risca pelo professor (quando não tutor), atendendo exclusivamente às demandas de valores e conhecimentos do mercado de trabalho rebaixado. Aliado a isso, o gerenciamento da educação pública através de meios privados avança com agilidade, seja através das Organizações Sociais, dos representantes da iniciativa privada no interior dos Conselhos Municipais de Educação, das parcerias público-privadas, entre outras maneiras de usurpar a educação dos trabalhadores.

Esses organismos encontram um cenário muito propício para sua atuação, já que os cortes de recursos e os ataques aos servidores públicos deterioram fortemente a educação, levando ao aguçado anseio da população por uma mudança drástica, de preferência que envolva a promoção do aluno ao mercado de trabalho frente à alta história de desemprego. As contrarreformas da educação também contribuem substancialmente para essa situação, já que a nova Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio pavimentam o caminho para a implementação de itinerários formativos repletos da ideologia do “empreendedorismo”, da educação financeira para a carestia e assim por diante, formas essas que já se encontram em fase de implantação [5] e servem também para a transferência do recurso público a fornecedores privados de tais cursos.

As perspectivas para a educação nos próximos anos, dados todos esses ataques à classe trabalhadora, não podem ser senão de greves recorrentes, ainda que o ano eleitoral possa evitar um avanço delas. Não à toa os governos estaduais e mesmo o senado buscam desde já aprovar legislações que tornem a educação um “serviço essencial”, o que objetiva claramente criminalizar as greves tal como já ocorre em outros setores (por exemplo, petrolífero) e ainda traz o agravante de submeter as comunidades escolares a graves riscos durante pandemias, catástrofes e afins. A nós, comunistas, cabe o papel de seguir atuando firmemente nos sindicatos e movimentos estudantis, criticando abertamente as direções que se reduzem à pauta econômica ou mesmo fazem conchavo com a burguesia, preparando, enfim, o solo para uma organização da classe que faça frente à ofensiva do capital sobre o terreno da educação. 

[1] Um estudo sobre a docência na pandemia, realizado pela CNTE, averiguou que mais de 80% dos professores notaram aumento em sua jornada de trabalho em função do ensino remoto:

<https://www.cnte.org.br/images/stories/2020/cnte_relatorio_da_pesquisa_covid_gestrado_julho2020.pdf>

[2] A título de exemplo, é emblemático o caso do estado de Santa Catarina: <https://necat.ufsc.br/as-origens-do-superavit-do-governo-de-santa-catarina-em-2020/>

[3] Os dados são do próprio Censo Escolar do INPE, tal como resumido superficialmente pelo Instituto Ruy Barbosa:

<https://irbcontas.org.br/jornal-hoje-destaca-levantamento-do-cte-irb-sobre-situacao-das-escolas-publicas/>

[4]Dados compilados pelo DIEESE:

<https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2021/boletimEmpregoemPauta21.html>

[5] Um claro exemplo disso é projeto “Aprender Valor”, promovido pelo Banco Central com vistas a atingir mais de 20 milhões de alunos: <https://aprendervalor.caeddigital.net/#!/pagina-inicial>

1 comentário

  1. Tenho acordo com o artigo, camarada.
    Pergunto-me até quando o filho do trabalhador na escola pública terá aulas uma vez por semana em esquemas de rodízio?
    Curioso, não ter lido ainda nenhuma manchete em que o Ministério Público, acione o Estado por conta da diferenciação agora evidente no mês de Agosto dos que possuem direito de irem a escola todos os dias, entre outros, que não estão sequer tendo acesso a qualquer ensino.
    Como impulsionar uma mobilização real pela abertura de mais salas e escolas públicas para adequarmos não a apenas um contexto de pandemias, mas a necessidade real da diminuição de alunos em sala de aula para um aprendizado real?

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