Nos últimos dias, o RJTV fez um panorama abrangente dos estragos causados pela chuva no estado do Rio de Janeiro. As reportagens seguem a seguinte linha: enquadramento de experiências individuais de perdas (materiais e humanas) em uma narrativa visando a comoção da audiência; realçando o drama das famílias, com imagens da destruição, das ruas e casas alagadas. Mas ressaltando também a superação dos cidadãos que, mesmo no auge do sofrimento, encontram forças para resistir e reconstruir suas vidas. A história de ações solidárias entre os moradores da comunidade, e da assistência social da sociedade civil, por meio de ONGs, leva o narrador a concluir pela importância da resiliência da cidade.
Cidade resiliente. Conceito novo, introduzido aos manuais de gestão pública de todos os países capitalistas a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015. A partir de então, o Escritório das Nações Unidas para a Redução de Riscos tem liderado a iniciativa “Construindo Cidades Resilientes”, secundada por 183 Estados nacionais, dentre os quais o governo federal brasileiro, e da qual participam diversas cidades do Brasil, como o Rio de Janeiro. Eduardo Paes, vale lembrar, lançou em 2015 (em seu mandato 2013-2017) o Programa Rio Resiliente. Há 9 anos! Na última segunda-feira, Paes reiterou que o risco das chuvas torrenciais no verão não é surpresa, e destacou a necessidade do “trabalho de resiliência”.
A reportagem corta para o comentarista no estúdio, que performa o que parecem ser duras críticas ao poder público, cobrando medidas de emergência, mas também intervenções estruturantes. Termina por simular o mesmo ânimo de revolta infligido aos telespectadores ao concluir contrariado: “todo ano é a mesma coisa”. Os telespectadores concordam. A cada início de ano os noticiários nos brindam com o revoltante espetáculo das tragédias relativas às chuvas de verão no Brasil. Pessoas perdendo seus bens, sua casa, sua família, sua vida, de um dia para o outro, devido a causas sazonais, portanto inteiramente previsíveis. Mas a reportagem acaba sem que o comentarista faça a pergunta mais importante: se as causas são sazonais, se essas tragédias são previsíveis, por que não são prevenidas? Por que todo ano é a mesma coisa?
Na última terça-feira, às 10h, se reuniram no Palácio Guanabara oito prefeitos, o governador do estado, e uma comitiva do governo federal para debater a situação de calamidade no Rio de Janeiro. Já à tarde, após a reunião, Cláudio Castro cede entrevista na qual culpa essa “nova realidade” do El Niño, e diz que “infelizmente este é o nosso novo normal”. Conclui declarando que “o Estado e as cidades têm de ser cada dia mais resilientes”. Podemos nós concluir, diante da centralidade dada pelo poder público à resiliência das cidades frente aos desastres socioambientais, que a política pública principal na prevenção às perdas materiais e humanas decorrentes das chuvas sazonais é a capacidade que cada cidadão demonstra de se recobrar ou se adaptar à má sorte.
Sabíamos de antemão que as soluções propostas pelos governantes não poderiam ser, no máximo, senão paliativas. Sabíamos isso pois todos conhecemos as soluções duradouras. Não se trata de nenhuma fórmula mágica que necessite de um cenáculo de líderes políticos para encontrar. Foi dito pelo repórter, pelos entrevistados, pelo comentarista, pelo Estatuto da Cidade, e pelos ODS da ONU. Obras de infraestrutura a partir de um planejamento urbano que tenha como objetivos a segurança, a saúde, a inclusão, o “bem viver” dos cidadãos, e etc. O problema é que a concretização de um planejamento urbano com tais objetivos esbarra necessariamente nos próprios pilares do modo de produção capitalista. Pois, para solucionar em nível ótimo o problema dos desastres socioambientais no Brasil, e, em específico, no Rio de Janeiro, fazendo uso dos melhores cérebros, da ciência e da tecnologia disponíveis, e dos abrangentes recursos do Estado, será preciso mexer na propriedade. Neste ponto, a própria legislação burguesa, como de costume, prevê para os cidadãos direitos que a sociedade burguesa não pode oferecer sem derrubar os seus pilares de sustentação.
A partir do momento em que buscamos a raiz do problema, somos levados a concluir que o capitalismo é a causa última das tragédias humanas das quais os desastres socioambientais são a causa mais imediata. A organização urbana, os polos de trabalho, a distribuição habitacional, em suma, o espaço social das cidades se nos apresentam como formas particulares de manifestação das relações de produção capitalistas. Isso porque a particularidade de cada cidade é resultado do grau de apropriação histórica das características naturais e culturais de cada território geográfico pela lógica da acumulação de capital. Na periferia do sistema, em um país subordinado como o Brasil, a formação urbana se deu aos solavancos dos ciclos econômicos do mercado internacional. Durante esse processo, se, por um lado, a construção dos polos do capital comercial, industrial e financeiro conduzidas pelo Estado brasileiro se orientaram por um modelo externo de planejamento urbano (primeiramente europeu, depois estadunidense), por outro lado, e paralelamente a isso, a sede do “polo do trabalho”, isto é, a distribuição espacial da moradia dos trabalhadores se deu, via de regra, sem qualquer planejamento, sem qualquer política habitacional, empurrados para as zonas circundantes às regiões concentradoras de renda e emprego.
A especulação imobiliária também tem grande importância na acumulação de capital nas cidades. Ela se serve dos centros de informação e decisão, dos polos turísticos, e das zonas residenciais de luxo, para fazer o espaço entrar na produção de mais-valia. Além disso, tem o efeito de reproduzir no espaço a divisão de classes, ao afastar a classe trabalhadora das regiões de maior valor aquisitivo. Para piorar, a depender do sabor das flutuações imobiliárias, e da necessidade de expansão desse setor, áreas antes desvalorizadas sofrem uma corrida do capital comercial para fins de especulação, o que comumente resulta em desapropriações e despejos da população autóctone, no chamado processo de gentrificação.
Uma das consequências da condição de país subdesenvolvido e dependente é que o mercado imobiliário brasileiro só existe das classes médias para cima. Para considerável parcela da classe trabalhadora brasileira, e sobretudo para as suas camadas mais empobrecidas, a responsabilidade da construção de moradia recai sobre os próprios trabalhadores. A chamada autoconstrução, isto é, o uso de formas de cooperação como o mutirão e a ajuda mútua, baseada na troca de favores e nos compromissos familiares, realizados nos dias de folga e fins de semana, têm sido historicamente a maneira como os trabalhadores constroem, com seu próprio trabalho, a sua habitação. Em regra, o fazem ocupando o terreno, com empréstimo de materiais, sem qualquer apoio técnico do Estado. O terreno, não raro, é localizado nas zonas periféricas, muitas vezes em encostas de morros e beira de rios. Se, nas zonas comerciais, industriais e financeiras, bem como nas zonas residenciais nobres e seminobres, a construção civil é um custo do capital, nas periferias as moradias são construídas de forma precária por trabalho não pago. Assim, carentes de serviços públicos básicos, como ruas asfaltadas, galerias pluviais, coleta de lixo, etc., essa camada da população se encontra abandonada à própria sorte, vítima fácil das intempéries climáticas.
Por fim, o atual processo de privatização dos serviços públicos fundamentais (como obras de infraestrutura e saneamento básico) vão na contramão de qualquer tentativa por parte dos governos de apresentar um planejamento sério para a solução das tragédias relacionadas às chuvas sazonais. O processo de privatização da CEDAE, por exemplo, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades do estado, já apresenta seus efeitos: encarecimento dos serviços, água mal tratada, e falta de abastecimento. De tal modo que, em todo verão, recai ainda sobre os trabalhadores a cruel ironia de padecer ao mesmo tempo do excesso de água sobre as suas cabeças, e da falta dela na torneira.
É evidente que um planejamento urbano racional, que tenha como objetivo reduzir ao máximo os desastres socioambientais deve começar por retirar essa população marginalizada das áreas de risco, e/ou dotar a sua moradia de toda a infraestrutura básica comumente fornecida pelo poder público às camadas médias e altas da população. Segundo dados de 2022, mais 2,5 milhões de brasileiros vivem em área de alto risco, além de 6 milhões de pessoas sem casa; por outro lado, contamos com mais de 11 milhões de imóveis desocupados. Não há fórmula mágica, mas, observando esses dados, a matemática é simples. No entanto, para realizar o casamento das pessoas sem casa (e em moradias de risco) com as casas sem pessoas, seria necessário cometer o pecado capital da nossa sociedade: a intervenção do Estado na propriedade capitalista. E tal não é possível no atual sistema econômico.
É neste cenário que aos governantes parece o mais adequado cobrar resiliência do povo. Resiliência. Conceito inicialmente mobilizado pela esquerda progressista, que em vez de revolta, rebelião, revolução, solicita aos trabalhadores que resista, que demonstrem eterna resistência ao sistema capitalista. Não por acaso o termo foi facilmente apropriado pelos porta-vozes do capital, como os organismos multilaterais, os governos, e a mídia. No caso das chuvas, o apelo à resiliência é uma confissão por parte dos governantes em sua incapacidade de intervir na propriedade privada para solucionar o problema.
A compreensão da forma capitalista de organização social e desenvolvimento urbano nas periferias do sistema como causa última dos desastres socioambientais não implica na obsolescência da luta dos trabalhadores pelas pautas mais imediatas, como a reestatização da CEDAE, contra a privatização dos serviços básicos, por obras públicas de infraestrutura e saneamento básico, por melhorias nos sistemas de previsão e alerta, e etc. Desde que o próprio processo dessas lutas seja compreendido como meios de educar e preparar pouco a pouco a classe trabalhadora para a necessidade da superação do modo de produção capitalista.