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A tática eleitoral do PSOL: resposta a “Duas táticas no Congresso do PSOL” de Valério Arcary

O VII Congresso Nacional do PSOL, que teve os seus trabalhos concluídos agora em setembro, aprovou suas resoluções por uma maioria de 56% contra uma minoria de 44%. O pomo da discórdia que dividiu o partido em dois blocos relativamente compactos foi o tema da tática eleitoral para 2022, principalmente no que diz respeito às eleições presidenciais. O bloco de oposição de esquerda, em minoria de delegados, defendeu que o PSOL lançasse ao pleito presidencial uma candidatura própria; já o bloco intitulado “PSOL de Todas as Lutas” (PTL), com a maioria dos delegados, defendeu “a construção de uma frente eleitoral das esquerdas com vistas à unidade no plano nacional”[1], o que, em bom português, significa a defesa de um apoio à Lula já no primeiro turno.

No entanto, a maneira como a resolução sobre as eleições de 2022 foi formulada, apesar de já “autorizar a Executiva Nacional do PSOL a iniciar diálogos formais” com as tais “esquerdas”, também resolve que “as definições conclusivas sobre a tática eleitoral” se dariam apenas no primeiro semestre de 2022, em Conferência Eleitoral Extraordinária. Assim, ao aprovar uma resolução que na verdade nada resolve, mas apenas adia as suas “definições conclusivas sobre a tática eleitoral” para o ano que vem, as correntes majoritárias na prática apenas decidiram pelo prolongamento da luta interna entre os dois blocos do partido até a Conferência Eleitoral.

É no contexto do prolongamento desta luta interna que, no dia 21/10, o portal Esquerda Online publicou um artigo de Valério Arcary intitulado “Duas táticas no Congresso do PSOL”, onde ele defende mais uma vez a posição do PTL, bloco que a sua corrente, a Resistência, não apenas compôs como também se comportou em todo o processo congressual, sobretudo por meio de suas redes, como seu mais ativo e proeminente porta-voz. Este artigo de Arcary é particularmente instrutivo para todos os militantes marxistas em geral, pois ali não apenas conhecemos os argumentos pretensamente marxistas com os quais ele procura sustentar frente à militância do partido a posição em favor da “Frente Eleitoral de Esquerda”, como também somos agraciados com uma construção argumentativa extremamente oportuna para o desenvolvimento do debate sobre a tática eleitoral para 2022 sob o ponto de vista do marxismo revolucionário.

Vejamos por quê: ainda na introdução do seu texto, Arcary advoga que “para formar um juízo do debate [acerca da tática eleitoral do PSOL para 2022] três elementos centrais devem ser equacionados: o que é o perigo Bolsonarista, qual é o legado da tradição marxista sobre a luta contra o perigo neofascista, e qual é o lugar do PT”. Obviamente, a própria maneira como o problema é formulado já afunila a solução para o lado de Arcary. Ao equalizar o perigo bolsonarista com o perigo neofascista, não somente ele deixa escapar o spoiler da resposta à primeira questão com a formulação da segunda, mas também já indica que nas próximas linhas reencontraremos a sua repisada evocação da fórmula trotskista da Frente Única contra o fascismo; fórmula que, traduzida para o brasileiro, vem a calhar numa frente eleitoral com o PT contra Bolsonaro. Não obstante, se adequadamente reformulados, os elementos mencionados por Arcary se mostram de fato centrais para formar um juízo do debate em questão. A fim de compreender o que está em jogo nesta polêmica, é necessário antes saber quais são as forças sociais e os interesses de classe que o bolsonarismo e o petismo representam, e, diante disso, indagar qual é, à luz do legado marxista, a decisão que o PSOL deve tomar sobre as eleições presidenciais do ano que vem.

O caráter de classe do bolsonarismo

É inegável que a ascensão política da extrema-direita em geral, e a eleição de Bolsonaro em específico, seja um traço iniludível do momento histórico por que passam as lutas de classes no Brasil. Este fenômeno da nossa conjuntura, gestado a partir das polissêmicas jornadas de junho de 2013, e que começa a ganhar contornos mais definidos a partir das grandes manifestações pelo impeachment de Dilma em 2015, tem desde então intrigado e afligido um sem-número de intelectuais progressistas e militantes de esquerda que se puseram a tentar entender e explicar do que se trata tão assustadora ocorrência. No entanto, indispostos a analisar o fenômeno a partir da crise econômica que atravessou a última década; bem como da crise política, mais especificamente, de representatividade das direções sindicais e partidárias de esquerda; e, por fim, do novo agrupamento político das classes sociais derivado da confluência histórica dessas crises, aos pensadores da esquerda brasileira não restou senão conjurar magicamente palavras como “nova direita”, “onda conservadora”, “neofascismo”, e etc., a fim de que seu cabalístico poder autoexplicativo pudesse substituir a análise concreta da situação concreta.

A análise rigorosa deu lugar a uma espécie de inventário comparativo das características comuns entre fenômenos semelhantes ocorridos outrora – como o fascismo, o nazismo, o franquismo, o integralismo, etc. -, bem como os ocorrentes alhures – nos Estados Unidos, na Alemanha, na Ucrânia, na Grécia, etc. Com efeito, antimarxista por sua própria natureza (de classe), é compreensível que a esquerda brasileira contemporânea, orientada por um democratismo tipicamente pequeno burguês, em histeria profunda diante do fenômeno em questão, tenha eleito o “neofascismo” como sua nomenclatura dileta. É compreensível pois, em primeiro lugar, poderiam agora, sem nenhum peso na consciência, abandonar essa história de socialismo, tão démodé nos dias atuais, e se declarar com orgulho e a plenos pulmões democratas. E, em segundo lugar, pois, se tratando de fascismo, poderiam inclusive sacar da manga a carta do “legado marxista” para justificar sua “aliança tática” com partidos liberais e setores “progressistas” da burguesia a fim de montar o time da civilização para enfrentar a barbárie fascista.

Diante desta frouxidão terminológica, “bolsonarismo” nos parece de fato o termo mais adequado para nomear o fenômeno, mas tão somente porque, referindo-se particularmente à situação concreta da atual conjuntura brasileira, ele demanda caracterização ulterior com base no terreno específico das lutas de classes. Valério Arcary parece compreender essa demanda quando diz que “é preciso ser rigoroso quando estudamos os nossos inimigos”.

O bolsonarismo não é somente uma corrente eleitoral de extrema direita, é um partido de “combate” em construção e, mais importante, está no poder. Movimentou centenas de milhares de uma massa de classe média privilegiada, exaltada e furiosa no passado sete de setembro. Partidos eleitorais, especialmente quando estão no poder, não se apoiam em mobilizações de impulso contrarrevolucionárias.

Neste cenário recheado de incertezas, a queda de popularidade de Bolsonaro nos permite avaliar melhor quais são as suas reais forças. Valério Arcary aponta corretamente que Bolsonaro não representa apenas uma corrente eleitoral, mas um “partido de combate” que busca consolidar uma influência de massas, “se preparando para uma luta longa, seja qual for o desenlace eleitoral”. Acrescenta ainda que “a influência do bolsonarismo se mantém em, pelo menos, um piso de 20% do eleitorado e o seu núcleo duro não é menor que 10%”. Para perder a eleição e continuar vivo, Bolsonaro deve contar com uma base social de massas, e 10% da população brasileira, conquanto proporcionalmente pequena com relação ao restante da população, é quantitativamente relevante para ser considerada uma base de massas. Mas quem são essas massas? O que isso significa em termos de força social real?

Apesar de possuir adeptos em todas as camadas sociais, a base orgânica de Bolsonaro é composta essencialmente por amplos setores da pequena burguesia decadente e por frações do exército industrial de reserva, especialmente aquelas que, por sua condição de “micro-empresário”, “patrões de si mesmos”, se identificam ideologicamente com a pequena burguesia reacionária. Contudo, a composição de classe dessa base social, ainda que numericamente relevante, não configura uma tropa de choque, uma milícia fascista. Com a exceção de minúsculos grupos declaradamente fascistas, a maioria desta base é formada por uma turba patética e pusilânime, incapaz de suportar um enfrentamento físico. Basta lembrar o ocorrido nas manifestações antifascistas em junho do ano passado, promovidos por torcidas organizadas. O que se deu ali não foi um confronto entre antifascistas e fascistas, mas entre antifascistas e a PM. Ali os antifascistas acossaram os bolsonaristas em defesa do Estado democrático, apenas para serem acossados pelo Estado democrático em defesa dos bolsonaristas. Os antifascistas procuraram o “fascismo” onde não havia, nos manifestantes civis, apenas para reencontrá-lo onde sempre esteve, nos coturnos e fardas.

A base de classe de Bolsonaro lhe confere legitimidade social, mas o que lhe confere força não é outra coisa senão o apoio das armas. Quando Bolsonaro declara que quem garante a democracia são as Forças Armadas, a esquerda democrata se escandaliza, mesmo sendo este um fato elementar da ciência política. Logo, enquanto tiver uma base social numericamente relevante que o legitime e sustente, bem como o apoio de setores relevantes das Forças Armadas e das polícias, Bolsonaro possuirá força considerável para ao menos impedir que ele seja uma opção imediatamente descartável pela burguesia. Arcary acerta, portanto, sobretudo quando diz que Bolsonaro não é um “cadáver insepulto”, mas que se prepara uma luta longa, mesmo perdendo as eleições. Isso porque Bolsonaro cumpre ainda uma função relevante para a classe dominante no tensionamento com as instituições republicanas. As inconsequentes bravatas golpistas de Bolsonaro, bem como a sua obsessão com a pauta dos costumes que a todo momento choca a sensibilidade liberal das camadas médias, logram o importante efeito de rebaixar as pautas de luta dos partidos de esquerda ao deslocar o antagonismo entre as classes para a luta da “democracia contra o fascismo”, dois cavalos nos quais a burguesia lança as suas apostas. Enquanto, por outro lado, Paulo Guedes como Ministro da Economia com supremos poderes, em articulação com as bancadas parlamentares da burguesia, aceleram a agenda liberal de contrarreformas e privatizações. Por detrás da aparência irracional e instável do chefe de governo, jaz uma sólida racionalidade incorporada por seu chefe das finanças. A irracionalidade de Bolsonaro obedece, assim, a uma razão de Estado.

De modo que, a despeito da agitação constante que promove sobre as suas bases orgânicas a fim de mantê-las em permanente mobilização, os reais interesses de classe que o governo Bolsonaro representa, conscientemente ou não, continuam sendo os do grande capital monopolista, como, de resto, foi o caso de todos os governos anteriores, e como será forçosamente o caso do próximo governo, estando dele à frente um militar ou um metalúrgico.

O caráter de classe do petismo

Sobre o PT, de início, Arcary se coloca a seguinte e importante questão:

Afinal, o PT é um partido de esquerda? Na tradição marxista, o critério chave para definir se um partido é de esquerda é social, de classe, não ideológico. Ou seja, admite-se que os trabalhadores são um sujeito social que se representa por diferentes partidos, dos mais moderados aos mais radicais.  Existem aqueles que discordam. (…) Há quem defenda que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias. Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força e, também, pela presença no governo ou na oposição.

O “critério-chave [marxista] para definir se um partido é de esquerda é social, de classe, não ideológico”. Há aqui uma confusão conceitual elementar. Afinal, o ato de determinar o caráter “social, de classe” de um partido por meio de um critério-chave é ou não um ato ideológico? É ou não um ato que pressupõe uma teoria sobre as classes sociais e sobre a sua organização política? Assim também, um partido que determina no seu programa, como sua missão histórica, a defesa dos interesses de uma classe, o faz ou não sob uma compreensão teórica prévia do que sejam esses interesses de classe que pretende representar? É significativo que Arcary desconsidere o “critério ideológico” para determinar o caráter de classe de um partido, pois ele próprio é um que crê sinceramente estar defendendo os interesses de classe dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que os empurra para o lulismo. É evidente, portanto, que não basta um partido crer e proclamar que defende e representa os interesses e as lutas dos trabalhadores, pois há diversas concepções contrastantes do que seja a realização política desses interesses. Grande parte da militância do PT acredita honestamente estar defendendo os interesses dos trabalhadores com as suas políticas assistencialistas. Logo, antes de falar de interesses de classe e de quais partidos os representam, é preciso estar de acordo sobre a teoria que melhor apreende as divisões de classes na sociedade capitalista.

Ora, a verdadeira importância da teoria marxista para a direção ideológica dos partidos que pretendem honestamente educar e organizar a classe trabalhadora para a sua luta política contra a supremacia burguesa é precisamente a sua capacidade de determinar com rigor científico, a propósito de cada evento da vida política do país, se tal ou qual decisão do partido de fato melhora e ou piora a posição, a força e o nível de organização dos trabalhadores nas lutas de classes. Portanto, se nos é permitido falar de “critérios marxistas” para avaliar um partido, tanto o critério “social, de classe”, quanto o critério “ideológico” são essenciais. Apesar da afirmação de Arcary, o primeiro e principal critério é justamente o ideológico. O critério da direção ideológica é mais determinante do que o da composição social quanto mais não seja porque nada impede que uma organização de composição majoritariamente operária, mesmo em sua direção, avance uma política que, na prática, represente os interesses da classe dominante. Isto é absolutamente comum, e quase a regra nos sindicatos atuais, notadamente aqueles sob a direção cutista. O PT mesmo é um partido de composição social majoritariamente proletária – embora a sua direção não mais o seja –, mas a sua política é uma que, na luta de classes, objetivamente beneficia a acumulação de capital em detrimento das lutas e dos interesses dos trabalhadores enquanto classe, e isso independentemente da eventual boa intenção dos seus dirigentes e militantes. Em suma, a composição de classe de uma organização não garante que ela assuma ou sustente a independência política e ideológica da sua classe.

É claro que os dois critérios são necessários para caracterizar um partido. Um partido que represente os interesses da classe trabalhadora mas que seja composto exclusiva ou majoritariamente por intelectuais, ou que seja dirigido exclusiva e majoritariamente por intelectuais, é um partido que existe apenas em si, mas não aos olhos do sujeito histórico para quem o partido se volta. Sua política pode ser correta, em favor da luta histórica do proletariado, mas se encontra isolado da maioria da classe que pretende representar, dirigir e organizar. Tal é o caso da maioria das organizações marxistas na realidade atual. Já um partido que seja composto majoritariamente por trabalhadores, mas cuja direção política e ideológica engendre e justifique uma prática que nas lutas de classes beneficiem os interesses da burguesia, sendo a sua função objetiva, seu efeito histórico, conferir uma política burguesa à classe trabalhadora, impedindo a sua organização como classe independente; é um partido que se tornou instrumento da dominação burguesa assim como qualquer outro partido burguês. Tal é o caso do PT.

A caracterização que Arcary faz do Partido dos Trabalhadores vale uma atenção detalhada:

O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Surgiu como um partido operário de massas de tipo laborista. Não deixou de o ser, apesar de treze anos de governos de colaboração de classes. É um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral e reformista. É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre a eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância. É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, porque defende a regulação do capitalismo. Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é muito diferente do peronismo. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta decadência, pelo menos, desde 2013, mas iniciou uma recuperação após o golpe institucional de 2016. Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses da classe. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo e, ao mesmo tempo, relativamente, independente da burguesia. Isso significa que tem a liberdade para fazer “giros políticos à esquerda”, ainda com maior impulso se está na oposição.

Há verdadeiros absurdos nesse parágrafo. Como uma correta compreensão da natureza de classe do PT é premissa essencial para uma análise consequente da tática eleitoral do PSOL, devemos dedicar alguns parágrafos para corrigir os erros de Arcary.

“[O PT] Não deixou de o ser [um partido operário de massas de tipo laborista], apesar de treze anos de governos de colaboração de classes”. Essa afirmação é incorreta em diversos níveis. De uma maneira esquemática, podemos dizer que o PT passou por três fases: o período de 1980 a 1988, de constante liderança nas lutas econômicas da classe operária e de permanente ofensiva pela “democratização” da sociedade brasileira; o período de 1989 até 2002, de gradual afastamento das lutas reais da classe e de crescente adequação aos mecanismos institucionais da democracia liberal recém-constituída da “Nova República”, e de 2003 até 2016, quando se tornou um dos mais eficientes partidos da ordem burguesa, enriquecendo os bolsos dos capitalistas e desmembrando a organização da classe trabalhadora. Desde então, nenhum evento, nenhuma inflexão, nada indica que a sua orientação tenha mudado. Voltaremos a isso. De toda forma, dizer que o PT continuou sendo em seu governo um partido operário de massas é uma afirmação feita para levar o leitor ao erro. Quem lê pensa num partido que, no governo, mobilizou as massas operárias, lutou por elas, etc.; em suma, pensa num partido que liderou a classe, e não em um que passou a manter sobre ela uma influência meramente eleitoral.

Continua Arcary: “É um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral e reformista”. Bem, um partido eleitoral e reformista não é um tipo especial de partido de esquerda, mas, no atual momento histórico do capitalismo global, é a própria regra. O próprio PSOL é um partido eleitoral e reformista. Contudo, há um erro aqui: o PT não é um partido reformista, se por reformismo entendermos um partido que luta por reformas. Mas Arcary logo se emenda: “É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, porque defende a regulação do capitalismo”. Ora, o nome disso não é partido reformista, o nome disso é partido liberal, ou, se quiser suavizar o impacto, liberal “com face humana”, ou social-liberal, à sua escolha. O problema de aceitarmos “reformistas que não lutam por reformas” é que daí é um curto passo para que aceitemos “socialistas que não lutam pelo socialismo”.

“É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre as eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância”. Recapitulando: até aqui temos que o PT é um partido que “está adaptado ao regime”, que “defende a regulação do capitalismo”, e que “depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não de sua militância”. De fato, tal é o PT. Aliás, tão acurada é essa descrição que, se não recorresse a distorções como “reformismo sem reformas” e “esquerda não ideológica” para assoprar sua mordida, o jornal Brasil de Fato pensaria duas vezes antes de publicar o texto de Arcary. Com efeito, diante dessa descrição, para não considerar o PT um partido da ordem burguesa, Arcary não possui outra alternativa senão mudar o próprio sentido dos termos “partido de esquerda”, “partido reformista” e “partido burguês”.

Senão, vejamos: “Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas”. Todo esse malabarismo, camaradas, para pretender ocultar o simples fato de que o PT, desde a virada do milênio, tem representado nas lutas de classes os interesses da burguesia. O que torna o PT um partido burguês não é a “condição eleitoral e uma política reformista”, mas tampouco são as “relações estruturais” com a burguesia, seja lá o que isso signifique. Aqui devemos complementar os dois critérios antes elencados por Arcary para caracterizar um partido – os critérios social e ideológico – com um terceiro: o critério da prática. Os dois critérios anteriores, por si mesmos, não passam de critérios a priori; apenas a prática é o critério capaz de confirmar a partir da sua atuação objetiva nas lutas de classes se o partido de fato defende quem proclama defender. É a história da prática política dos partidos o que deve fornecer a prova real dos critérios de composição de classe e da direção ideológica. E a prática política do PT, não apenas quando esteve no governo federal, mas ainda hoje, onde se encontra à frente de governos estaduais e municipais, bem como nas presidências das casas parlamentares, tem sido o ataque sistemático à classe trabalhadora. E é justamente por ser um partido que defende a ordem burguesa ao mesmo tempo em que se pretende representante dos trabalhadores e, de fato, ainda detém certa influência eleitoral sobre frações consideráveis da classe, é que o PT é hoje o mais ativo obstáculo no processo de formação de uma classe operária independente no Brasil.

Daí ser o ponto mais estapafúrdio de todo o texto, que vem sendo reiterado em outros textos de Arcary sobre o tema, e que terminou por ser aprovado como resolução congressual do PSOL, justamente a esperança de sentar em “uma mesa de negociação com o PT, e outros partidos de esquerda, sobre um programa de reformas estruturais e medidas anticapitalistas”. Camaradas, das duas uma: ou os dirigentes do PTL acreditam que de fato Lula e o PT vão adotar um programa anticapitalista, em cujo caso estamos falando de ingênuos analfabetos políticos; ou sabem muito bem que isso é impossível, em cujo caso enganam deliberadamente a sua militância. Não há nenhum indício, nenhum movimento, nenhuma fala, ou mesmo um ato falho, nada, zero, que justifique a crença de que Lula defenderá nas próximas eleições um programa anticapitalista. Nada, camaradas. Podemos dizer inclusive que Lula vem fazendo um tremendo esforço para demonstrar o contrário. Semanalmente! Toda e qualquer movimentação de Lula, antes e depois de se tornar elegível novamente refuta essa possibilidade. De tal sorte que o PSOL possui nesta questão apenas duas opções reais: ou lançar candidatura própria, ou então apoiar Lula no primeiro turno sabendo muito bem que ele dará continuidade à agenda liberal da burguesia. Já apoiar Lula no primeiro turno com um programa anticapitalista de reformas estruturais em favor da classe trabalhadora, esta se trata de uma opção imaginária, beirando ao delírio. Contudo, é razoável crer que os experimentados dirigentes do bloco majoritário não possuam total consciência de que esta terceira se trata de uma opção imaginária? Não é muito mais razoável crer que essa opção seja usada conscientemente para convencer a militância a entrar numa frente eleitoral com o PT a fim de conseguir ganhos institucionais concretos, seja com cargos no governo, seja com alianças locais, seja mesmo concentrando seus candidatos às proporcionais para romper a cláusula de barreira?

O fato é que, a despeito de professar o marxismo, a corrente Resistência, com Arcary à cabeça, tem assumido nos últimos meses a ingrata tarefa de ser o testa-de-ferro, o laranja, da Primavera Socialista e da Revolução Solidária, da ala petista dentro do PSOL. Tem se incumbido da despropositada tarefa de ser a consciência crítica do PT, de dizer o que Lula deve ou não fazer, de soltar tweets repreendendo Lula por seus “erros” ao não convocar ou participar das manifestações pelo “Fora Bolsonaro”, mas, em vez disso, entabular conversas com caciques do MDB do nível de José Sarney e Eunício Oliveira, e outros “golpistas”. Mas isso não são “erros”, camaradas, são acertos. Lula é um político da ordem, um político que possui hoje o propósito de se apresentar à burguesia como uma alternativa segura para o retorno à normalidade republicana. Justamente por isso, também foi um acerto Lula haver se rendido sem luta ao mandado de sua prisão em 2018. Em seu discurso de rendição em São Bernardo do Campo, Lula demonizou a subversão da ordem e a revolução, exaltou a “justiça” e a “democracia”, e mansamente se entregou às autoridades. São acertos, camaradas. Sem este ato, um verdadeiro manifesto político em favor da ordem burguesa, a manutenção da sua figura e, por associação, do seu partido, como carta na manga da burguesia seria inviabilizada. Hoje, diante da queda de popularidade de Bolsonaro, e de um recuo das lutas operárias, Lula e o PT reemergem mais uma vez com popularidade revigorada como a solução mais sensata, com amplo apoio das camadas médias democratas, para a restauração do pacto social que inaugurou a “Nova República”. E, ao que tudo indica, para esta restauração a burguesia terá o apoio de grande parte da esquerda brasileira.

Por uma tática eleitoral marxista

Conhecemos a cantilena. Bolsonaro é fascista, e fascismo se derrota com a Frente Única. Conforme Arcary:

A tática da Frente Única foi elaborada pela III Internacional e, posteriormente, desenvolvida por Leon Trotsky no contexto dramático da luta contra o nazismo na Alemanha. A ideia mais importante é simples. Quando em uma situação defensiva, os revolucionários devem lutar pela unidade das organizações que representam os trabalhadores e oprimidos, portanto, também, de todos partidos da esquerda, inclusive, os mais reformistas, para construir uma trincheira, barreira, muralha contra o inimigo de classe. O objetivo é impulsionar a luta. O eixo da tática é a compreensão de que a unidade fortalece a confiança e gera melhores condições de colocar em movimento milhões e sair da defensiva. A tática prioriza o terreno da ação direta: a preparação de atos, passeatas, e greves, quando possível, para mudar a relação social de forças. Foi isso que o PSOL fez ao ajudar à construção da campanha Fora Bolsonaro que realizou seis jornadas nacionais a partir de uma convocação unitária das Frentes Brasil Popular (onde o PT tem a maior influência) e Povo sem Medo (onde o PSOL tem maior autoridade). Trotsky não criticou o PC da Alemanha, por exemplo, por apresentar candidatura própria. Não porque subestimasse Hitler. Escreveu um clássico alertando, incansavelmente, o perigo da derrota histórica, que, finalmente, ocorreu. Mas, porque considerava que o peso relativo do PC o legitimava. Ter força própria conta muito na hora da definição da tática dos revolucionários. Mas ela não exclui a possibilidade, também, da apresentação de uma Frente Eleitoral de Esquerda. Essa decisão repousa no critério da avaliação da relação política de forças, tanto na sociedade, quanto dentro da esquerda.

Vamos por partes. Elaborada por Trotsky, e aprovada pelo IV Congresso da III Internacional, a tese em defesa da política da frente única é bastante clara a respeito dos seus objetivos e do contexto em que deve ser utilizada. Em primeiro lugar, não se trata de uma frente única de esquerda, mas, note bem, de uma frente única operária. O ponto de referência inamovível é aqui a classe, e não os partidos. Os partidos entram em consideração apenas na medida em que tenham influência sobre a classe operária. Isto é, a política da frente única operária deve ser adotada pelas organizações comunistas sempre que frações relevantes da classe operária pertençam ou apoiem as organizações reformistas. A tática é propor acordos junto às organizações reformistas – acordos públicos e aos olhos de toda a classe – para ações comuns entre as massas operárias em suas lutas cotidianas. O próprio ato de propor recorrentemente e de maneira pública este acordo às organizações reformistas para uma ação de massas, e a constante demonstração pelos comunistas da linha mais justa e mais avançada no curso dessas ações, aumentaria a influência destes sobre os operários. Ou seja, um princípio incontornável da adoção da política da frente única pelos comunistas é a manutenção da sua independência, é a diferenciação ostensiva entre a política reformista e a política revolucionária, não tanto por meio de discursos, mas sobretudo pela sua comprovação na prática das lutas cotidianas dos operários. Tal é o objetivo principal desta política: conquistar para o comunismo os operários sob influência dos partidos reformistas por meio da unidade nas lutas reais da classe.

O que isso significa no contexto do atual momento das lutas de classes no Brasil? Para Arcary, significa que, sendo o PT o partido reformista de maior influência sobre a classe operária, seria permissível aos marxistas a adoção da tática da frente única. Mas, para o marxismo, esta tática só pode ser utilizada se, e somente se, os acordos com o PT estiverem relacionados apenas à luta cotidiana das massas operárias, e se os revolucionários nessa ação comum em nenhum momento abdicassem de defender seus princípios, suas bandeias, e seus programas, contrastando-os constantemente com o programa reformista. Mas é esta de fato a presente situação? É evidente que não. Em primeiro lugar, o PT, como já vimos, sequer é um partido reformista; mas um partido social-liberal, ou seja, um partido que, com uma mão, dá à classe trabalhadora programas assistencialistas e auxílios compensatórios a fim de suavizar o choque das contrarreformas burguesas que, com a outra mão, ele conduz e facilita. Além disso, vale lembrar que um partido reformista, no sentido que Trotsky dava a esse termo no início do século XX, se referindo aos sociais-democratas[2], não é apenas um partido que luta por reformas, mas é essencialmente um partido que ainda se declara socialista, mas que, em contraste com os revolucionários, crê que a realização do socialismo se dará pela via das reformas. Nesse sentido, o próprio PSOL pode ser considerado um partido reformista, ao menos por enquanto; mas não o PT.

Dizer, portanto, que o PT é um partido reformista, e não um partido burguês, é a maneira que Arcary encontra de encaixar a realidade brasileira atual em um esquema da frente única com base nas caracterizações de Trotsky. Isso porque, se Trotsky reconhece a legitimidade da frente única com partidos reformistas, de forma nenhuma ele a reconhece em uma frente com partidos burgueses. Daí a importância da correta caracterização de classe do PT. Pois nessa caracterização reside a diferença entre uma frente com adversários do mesmo campo socialista, e uma frente com os representantes dos inimigos de classe dos trabalhadores.

Em segundo lugar, o PT não possui a influência que algum dia teve sobre a classe operária. Sua influência, que nos anos 1980 foi ativa em favor da organização e mobilização da classe, hoje é influência passiva em favor da desorganização e desmobilização. Há mais de 20 anos sem convocar as massas, sem exercer um papel de liderança dos trabalhadores, a influência de Lula, do PT e da CUT apenas pode ser considerada negativa. O PT ainda detém sim considerável influência sobre os trabalhadores, mas por ser uma eficiente máquina eleitoral; por ter a hegemonia sobre os sindicatos e demais partidos de esquerda; por obstruir o surgimento de qualquer alternativa de esquerda à sua política; por possuir condições materiais, quer advindas do fundo público, quer de financiamento privado, seja de forma legal ou ilegal; por não ter escrúpulos em fazer acordos com o grande capital, com os políticos tradicionais, ou mesmo com mercadores da fé, para eleger seus quadros; por tornar as camadas mais pauperizadas dependentes do seu assistencialismo de cariz cristão; por ser, por fim, ele próprio um partido fisiológico e conhecer os atalhos oferecidos pelo Estado, incluindo a corrupção, a fim de potencializar a sua influência. Possui sim influência, este tipo de influência.

Em terceiro lugar, tampouco a tal Frente Única de Esquerda pelo “Fora Bolsonaro” tem a mais remota relação com a luta cotidiana da classe operária. Olhando para a “Campanha Fora Bolsonaro” comandada pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, vemos que o conteúdo político dos atos já se encontra desde o início muito bem definido em torno das pautas democráticas liberais, pela defesa das instituições burguesas, e com os olhos voltados para as eleições. Mas, muito mais do que os discursos, devemos olhar para a composição social dessas manifestações. Veremos que a sua adesão é extraída majoritariamente das camadas médias urbanas, de intelectuais, artistas, professores, funcionários públicos, burocratas sindicais, estudantes, etc. A dialética que se segue disso é inexorável: esta composição social não pode gerar espontaneamente outras pautas que não as democráticas liberais, que, por sua vez, não existindo nenhum esforço por parte das lideranças em vincular pautas das lutas cotidianas da classe operária ao “Fora Bolsonaro”, o caráter pequeno burguês das manifestações segue sendo reforçado e segue afastando deles a adesão da maioria dos trabalhadores. Como consequência, temos os atos festivos de fim de semana, atos de curto fôlego, de uma disposição de luta instável, com pautas as mais variadas, as mais universais e abstratas, logo, pautas que não orientam a luta prática, não apontam os próximos passos, não indicam uma evolução das formas de luta; do que deriva um inevitável esvaziamento conforme continuam a ser convocados sem a realização concreta de nenhuma dessas pautas, e uma visível tendência a ganhar um teor de campanha eleitoral.

É preciso sublinhar: a classe operária não está nas manifestações. O que não significa que ela esteja parada, o que não significa que ela não esteja em luta. Ela só não enxerga, em sua maioria, os atos do “Fora Bolsonaro” como uma luta sua. E isto é inteiramente compreensível. Importantes categorias operárias tem a sua data-base no segundo semestre, nos meses de setembro, outubro e novembro, e se encontram em intensa mobilização em torno de suas campanhas salariais. Completamente alheias a esse fato, em nenhum momento ocorreu às lideranças dos atos pelo “Fora Bolsonaro” inserir em seu conteúdo a pauta do salário na tentativa de atrair setores operários para as manifestações; mas, em vez disso, preferem insistir na pauta assistencialista do auxílio emergencial. Isso seria espantoso, se não fosse inteiramente previsível, dado o caráter democrático liberal, diga-se, pequeno burguês, que tem assumido nas últimas décadas os principais partidos de esquerda. Logo, aquelas organizações de esquerda que, sob o verniz do discurso marxista, de um lado, defendem a política da Frente Única de Esquerda com o PT, um partido social-liberal, em uma ação de massas que vira as costas à classe operária, e, de outro, defendem uma fusão programática do PSOL com este mesmo partido em uma frente eleitoral, ou se equivocam gravemente, ou simplesmente ocultam sua submissão voluntária à política eleitoreira e de conciliação de classes do petismo.

Defender uma “Frente Eleitoral de Esquerda” pretendendo fazer a militância crer que ela é uma consequência da política de frente única operária defendida por Trotsky, é elevar o revisionismo a um patamar superior. Reparem como Arcary não se demora nesse ponto, pois do contrário ele seria obrigado a admitir que não há nenhuma “frente única eleitoral” em Trotsky. Em seu texto ele concede apenas que “Trotsky não criticou o PC da Alemanha, por exemplo, por apresentar candidatura própria”. Mais uma vez Arcary induz o leitor a erro. Avaliem os camaradas por si mesmos nas palavras do próprio Trotsky:

A ideia de propor o candidato à presidência pela frente única operária é uma ideia radicalmente errônea. Só se pode propor um candidato na base de um programa definido. O partido não tem o direito de furtar-se, durante a eleição, de mobilizar os seus simpatizantes e de contar as suas forças. A candidatura do partido, oposta a todas as outras candidaturas, não poderia impedir, em nenhum caso, o acordo com as outras organizações para os fins imediatos da luta. Os comunistas, façam ou não façam parte do partido oficial, apoiarão com todas as suas forças a candidatura Thälmann [o candidato comunista]. Não se trata de Thälmann, mas da bandeira do comunismo. Defenderemos essa bandeira contra todos os outros partidos. Destruindo os preconceitos enxertados pela burocracia stalinista nas fileiras comunistas, a Oposição de Esquerda abre para si o caminho da consciência destas.[3]

Percebem a diferença de tom? Dizer que “Trotsky não criticou”, e deixar por isso mesmo, ou mesmo acrescentar que “essa decisão repousa no critério da avaliação da relação política de forças”, não é radicalmente diferente do que dizer que Trotsky defendeu intransigentemente, como questão de princípio, uma candidatura própria para os comunistas da Alemanha?

Esta passagem de Trotsky é extremamente instrutiva pois nos faz lembrar, em primeiro lugar, que os marxistas possuem princípios. Sim, que, apesar de sempre tomar suas decisões com base em análise concreta da relação de forças, nenhuma análise, por mais acertada e concreta que aparente ser, pode resultar em decisões que firam o princípio dos comunistas de sempre diferenciar as suas bandeiras partidárias e seu programa daqueles partidos que comprometam a independência política, ideológica e organizativa da classe trabalhadora. Em segundo lugar, esse excerto de Trotsky nos evidencia como o caráter e a função da participação das organizações marxistas nas eleições estão inteiramente condicionados ao propósito de propagar seu programa a fim de organizar os trabalhadores. Uma organização marxista que compõe uma frente única eleitoral com partidos que a obriguem a rebaixar o seu programa já não é mais uma organização marxista. Ainda Trotsky:

(…) precisamente no domínio da propaganda, a frente única é inadmissível. A propaganda deve apoiar-se em princípios claros, num programa definido. Marchar separadamente, lutar juntos. O bloco é unicamente para ações práticas de massas. Os acordos de cúpula, sem base de princípios, não trazem outra coisa, senão confusão.[4]

O problema aqui está em saber qual é a política de uma organização marxista para as eleições. E todas as manifestações de Arcary acerca da função e do propósito de uma candidatura própria do PSOL em 2022 seguem a linha contrária ao marxismo. Defende o intelectual da Resistência que uma candidatura do PSOL será “invisível, testemunhal, estéril”[5], se reduziria a uma condição marginal, que não haverá espaço para ser disputado à esquerda de Lula, que as eleições serão polarizadas e que a disputa se dará tão somente entre Lula e Bolsonaro, não importando o discurso do candidato do PSOL. Sim, é provável que uma candidatura do PSOL no primeiro turno seja marginal, e que o foco esteja em Lula e Bolsonaro. Mas dizer que seria uma candidatura invisível e estéril é um pouco forte, não acham? Haverá tempo de TV? Haverá participação em debates? Haverá comícios e caravanas? Haverá campanha nas redes? Então invisível não será nem poderia ser. Além disso, declarar de antemão como estéril uma candidatura de força minoritária é equalizar os ganhos políticos com ganhos eleitorais, quando mesmo os reformistas reconhecem a diferença entre ambos. Por fim, se realmente estivesse preocupado com a invisibilidade e esterilidade da participação eleitoral do PSOL na campanha à presidência em 2022, Arcary rapidamente perceberia que a maneira mais eficiente de condenar o PSOL a essa condição de nulidade seria justamente a decisão de fazer o partido se esconder sob as asas do PT.

Ademais, certamente Arcary, como um marxista, sabe que o principal uso das eleições burguesas pelos comunistas é para fins de agitação e propaganda diante das massas. Para Engels, inclusive, as eleições são o “melhor meio de propaganda; de instruir-nos com exatidão sobre as nossas próprias forças”, “um meio sem igual para entrar em contato com as massas populares onde elas ainda estão distantes de nós” e para “obrigar todos os partidos a defender-se diante de todo o povo dos nossos ataques às suas opiniões e ações”[6]. Assim, o que Arcary e a direção majoritária do PSOL pretendem, relegando-o à sombra de Lula, é precisamente privar o partido do seu melhor meio de propaganda, do melhor meio para que o partido entre em contato direto com as massas para apresentar o seu ponto de vista e o seu programa. Arcary teme que o candidato do PSOL seja obrigado a ficar se diferenciando de Lula e atacando Bolsonaro; atuação que, por algum motivo desconhecido, ele não crê que seja possível. Logo, pretende também eximir o partido da tarefa extremamente educativa de obrigar todos os partidos a se defenderem dos nossos ataques diante de todo o povo, assim elevando a sua consciência política para as diferenças essenciais entre os candidatos. Arcary, e o PTL, não querem que o PSOL se apresente às massas, justamente no período em que as massas mais estão atentas à política; isto é, não querem que o PSOL se diferencie do PT diante das massas.

Em Engels e Trotsky, como vimos, o princípio da independência ideológica do partido da classe trabalhadora, aliado à total clareza quanto ao caráter ilusório da via reformista para o socialismo, resulta para o marxismo em uma política eleitoral inteiramente submetida à agitação pela independência de classe dos trabalhadores e pelo esforço de destacar as demandas programáticas dos trabalhadores daquelas dos demais partidos. Em diferentes contextos, também Marx e Lenin reforçaram a mesma função tática do sufrágio universal para os comunistas, por sua vez com ênfase no alerta sobre os perigos dos discursos dos democratas em favor de amalgamar os diferentes interesses de classe, os diferentes programas partidários, diga-se, de fazer uma “frente eleitoral democrática”, com o intuito de segurar o avanço das forças reacionárias.

Em meio ao processo eleitoral da Duma em 1911, e mesmo diante da violência real perpetrada pela força reacionária dos Centúrias Negras (os pogroms), Lenin declarava que a linha política e ideológica dos marxistas na campanha deveria ser “educar e organizar a classe trabalhadora, uni-la em um partido independente (…) explicar para a classe trabalhadora seus objetivos históricos de transformar as condições básicas da economia mercantil e do capitalismo, segregar seu partido de todas as tendências democrático-burguesas, inclusive aquelas de ‘esquerda’[7]. Por fim, mas não menos importante, ficamos com as palavras de Marx, em mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas, em 1850:

Mesmo onde não haja nenhuma possibilidade de serem eleitos, é necessário que os operários apresentem seus próprios candidatos, a fim de conservar sua independência, avaliar suas forças e mostrar ao público sua posição revolucionária e o ponto de vista do seu partido. Aqui é necessário que eles não se deixem levar pelas palavras fáceis dos democratas – por exemplo, que tal atitude dividiria o campo democrático e daria à reação uma chance de triunfo.[8]

É possível ser mais claro do que isso?

Não são Arcary e o PTL os democratas que lançam à militância do PSOL palavras fáceis a fim de convencê-la a apoiar a perda da independência do partido, a apoiar a renúncia da oportunidade de o partido mostrar ao público sua posição e ponto de vista, a apoiar a mistura do partido com tendências burguesas, inclusive àquelas de esquerda, a fim de não dar à reação uma chance de triunfo? Não é Arcary quem vocifera que uma candidatura do PSOL “desmoralizará a esquerda socialista pelo divisionismo diante de um inimigo”[9]? Mas a verdadeira questão a ser feita é: será razoável que o partido sacrifique seus princípios, sua independência, abdique de usar esse período de ampla visibilidade na defesa das bandeiras históricas da classe trabalhadora, que apoie um partido que atacou e segue atacando os trabalhadores, tudo isso para derrotar uma “corrente neofascista” que, se tal de fato existir, por sua própria natureza, não pode ser derrotada nas eleições?

Mas Arcary lança a sua última cartada, e nos enche de terror com o “perigo neofascista” que representa Bolsonaro. Conhecemos o seu medo de que uma candidatura do PSOL acabe se concentrando mais na explicação de suas diferenças com Lula do que na necessidade de derrotar Bolsonaro. O maior perigo é Bolsonaro, defende ele, e não Lula. Mas do ponto de vista marxista, o maior perigo para a classe trabalhadora não é, nem nunca foi, a repressão policial, as milícias fascistas, a legislação draconiana, as contrarreformas, o ataque direto aos seus direitos, às suas condições de trabalho, ou mesmo à sua própria vida. Sim, caro marxista da Resistência, o maior perigo para a classe trabalhadora não é, nem de longe, a reeleição de Bolsonaro. O inimigo que lhe estende as mãos para uma frente eleitoral e se insinua amigavelmente para dentro de suas fileiras como um camarada, este é, e sempre foi, o perigo que a classe trabalhadora mais deve temer. Não é o inimigo que se apresenta claramente como tal o maior perigo para os trabalhadores, mas o falso amigo. Pois a maior arma dos trabalhadores nas lutas de classes, aquela sobre a qual é erigido todo o seu arsenal e sem a qual eles se reduzem a um indefeso agregado de indivíduos, é a sua independência ideológica, isto é, a sua consciência de classe. E essa consciência não é corrompida pelos ataques do governo; se algo, esses ataques contribuem para elevá-la. Não, camaradas, a consciência de classe é corrompida pela “falsa esquerda”, que desvia as massas trabalhadoras da luta real com frases vazias sobre o “perigo neofascista”. O marxista da Resistência, sem compreender que a luta contra o PT é a luta por libertar a consciência dos trabalhadores das falsas ideias e dos preconceitos que este partido insiste em instilar sobre a classe, rebaixando a sua compreensão política, comprometendo a sua independência e a sua organização, e tornando-a presa fácil à ofensiva burguesa; pretende usar os holofotes do período eleitoral precisamente para misturar o PSOL com o PT aos olhos de toda a classe trabalhadora!

O PSOL deve ter uma candidatura própria, quanto mais não seja, para manter-se um partido vivo. Pois um partido nascido com a função histórica de superar os limites e as contradições do Partido dos Trabalhadores, deve cumprir a sua função ou perecer. Não está em questão o desaparecimento do partido, mas a sua iminente irrelevância como instrumento de luta dos trabalhadores. A luta interna do PSOL em torno da tática eleitoral para 2022 é assim a luta da parcela das correntes e da militância que querem manter vivo esse instrumento de luta contra a parcela que quer, ela sim, torná-lo invisível e estéril aos trabalhadores.

Arcary gosta de começar seus textos com epígrafes de sabedoria popular. Neste, foi um provérbio português apropriado à ocasião: “Conheces o marinheiro quando vem a tempestade”. A tempestade chegou, o barco é o PSOL, e o capitão quer afundá-lo. E agora marinheiros?


[1] https://psol50.org.br/wp-content/uploads/2021/09/Resolucao-Eleitoral-7%C2%B0-Congresso-Nacional-do-PSOL.pdf

[2] A história da social-democracia europeia na segunda metade do século XX demonstra a conclusão lógica da crença na conquista do socialista via reforma do Estado burguês. Os partidos sociais-democratas deixariam de professar o socialismo, deixariam inclusive de lutar por reformas, e se tornariam meros administradores “com face humana” da ordem burguesa.

[3] Trostky. Como esmagar o fascismo. P. 116. Link: http://library.lol/main/0CF3C2878CD4F6177A766AFBD6BD41D2

[4] Idem.

[5] https://esquerdaonline.com.br/2021/09/21/sete-notas-sobre-o-congresso-do-psol-valerio-arcary/

[6] https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/introducao.htm

[7] Lenin. Collected Works, p. 279, 373. (tradução e grifo nosso). Link: http://library.lol/main/1B9E73286AF0C00C3DFEE4C4D884A72C

[8] https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm

[9] https://esquerdaonline.com.br/2021/09/21/sete-notas-sobre-o-congresso-do-psol-valerio-arcary/

2 comentários

  1. Seria didático entrar numa canoa furada e pedir aos trabalhadores que entrem nela … porque o destino histórico a dirigirá para o caminho certo?
    … Não acredito e nem a grande maioria dos trabalhadores acredita,quem está do seu lado no dia a dia? Talvez as igrejas pentecostais, ou qualquer entidade que lhe dá assistência. O trabalhador é o ser mais materialista que qualquer pensador iluminado pelo idealismo pseudomarxista, interessa a ele a vida agora! não lhe interessa a história e seu devir. Talvez seja por isso que o populismo funciona sempre nos países da mais valia absoluta.Enquanto não largarmos a fé dissimulada nas instituições burguesas, a tarefa principal de despertar para consciência de classe e contribuir para organizar o trabalhador onde ele vive, aliás, onde nós vivemos, fica adiada e não será realizada(para aqueles que ainda não se corromperam de alguma forma ). Esse barco é furado!, se formos honestos a organização deve ser feita fora dele. A credibilidade de uma proposta verdadeiramente revolucionária ,só é possível na convivência, o discurso só dá direção a classe que já está organizada. E não serão as contradições do capitalismo nos países da superexploração do trabalho, mergulhados na miséria e desespero que elevarão a consciência das massas trabalhadoras dirigidas por discursos eleitorais, ao contrário a levará para mais barbárie Concluindo, é um sofisma achar que estar num partido instituído é ter o megafone para falar aos trabalhadores! não falamos aos trabalhadores, falamos a nós mesmos. A NEGAÇÃO DE QUALQUER DISCURSO PRESENTE E ORGANIZADO INTERNAMENTE AO PSOL PARA AS ELEIÇÕES (É PARA ISSO QUE SERVE O PARTIDO POLÍTICO HOJE) É A AFIRMAÇÃO DOS MESMOS FINS.

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