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As lutas de classes no Chile: as armadilhas do constitucionalismo antineoliberal

As recentes eleições chilenas à constituinte, ocorridas na esteira da irrupção popular do povo chileno, têm sido celebradas como a derrocada do neoliberalismo e das direitas naquele país. Partidos tradicionais, sejam os velhos gestores de esquerda da Concertación ou de direita, conforme noticiam todos analistas e jornais possíveis, foram duramente castigados. Junto disso, êxitos retratados como definitiva ruptura com os restos do golpe de 1973 são elencados em profusão: partidos da direita tradicional não alcançaram o terço de constituintes esperado para que pudessem ter poder de veto na formulação da próxima constituição. Iraci Hassler, uma militante do partido comunista, conquistou a prefeitura da capital chilena e Daniel Jadue, outro militante do PC chileno, desfruta de reconhecimento e de prestígio e agora figura como possível próximo presidente. 

O pêndulo chileno, afinal, estaria tão à esquerda que o país de Salvador Allende estaria a caminho de ter seu primeiro presidente de uma sigla que leva o nome de comunista. Atílio Borón, diante de tudo isso, é enfático ao descrever o processo: “vitória categórica da esquerda e derrota esmagadora da direita.’’ Sem dúvida, a eclosão popular chilena, que tanto sangue custou, que, com seus carabineiros truculentos, fez desmoronar a idílica imagem da boa democracia latino-americana com selo de aprovação da OCDE, é um divisor d’águas na história do país. A narrativa de uma idiossincrática estabilidade chilena em meio ao caudilhismo, que remonta aos tempos de Diego Portales e a moderada democracia com legado pinochetista agora capitaneada por Sebastián Piñera, em grande parte, naufragaram. Há uma perspectiva generalizada de definitivo enterro do constitucionalismo neoliberal, mas poderíamos estar tão seguros em afirmar que há em definitivo a vitória de uma esquerda sobre a direita? Seria isso suficiente para entender o drama do povo chileno?

É verdade que os antigos partidos da ordem não asseguraram, enquanto constituintes, a representatividade que costumeiramente têm. Agremiações relativamente mais declaradamente à esquerda e os ditos independentes é que foram os mais votados, mas não se pode esquecer que se tratou de eleição com altíssima abstenção e que a análise política empreendida com base nesse nominalismo e em identidades, ora designando certas forças como direita, ora designando-as  como esquerda, ora apontando número de indígenas, ora apontando número de mulheres eleitos, em pouco ajuda a elucidar o real cenário em curso.

A substituição da análise do antagonismo entre capital e trabalho pelo falso antagonismo entre Estado e mercado e, como consequência, a eleição do ‘’fim do neoliberalismo’’ como utopia máxima a ser atingida pela esquerda tem permitido festejar vitórias que possivelmente têm pés de barro.  Analisando a lista dos mais votados ou mesmo as características gerais das coalizões, pode-se dizer que houve uma opção dos votantes sobretudo pelo jovem jurista especialista em constitucionalismo com compromissos genéricos de mudar o velho modelo e por um sentimento genérico de defesa de serviços públicos. Houve, em geral, uma opção pelo constitucionalismo estatista com compromissos visando ao estabelecimento de um Estado de Bem-Estar Social aos moldes do que seria Portugal, França, Espanha, como defende, por exemplo, o advogado midiático Daniel Stingo, o mais bem votado dos constituintes. 

O movimento dos denominados Independientes No Neutrales, que chegou a ter alguns dos dez constituintes mais votados do país expressa bem essa tendência de constitucionalismo progressivo moderado: a plataforma política, que reúne experts em constitucionalismo, figuras egressas de ONGs, ou da Concertación, caracteriza-se sobretudo por alegada independência, por respeito aos direitos humanos e pela defesa do que denominam de um Estado a serviço das pessoas com suas diferentes identidades, desenvolvimento sustentável e descentralizado. Tamanha é a ausência de caracterização da situação política ou de delimitação programática, que se torna bastante difícil saber a que nível permanecerão de fato independentes esses representantes em relação aos tentáculos dos velhos partidos da ordem e dos interesses da burguesia no Chile. E a situação não é tão distinta entre coalizões declaradamente de esquerda que surgiram recentemente, inclusive entabulando críticas ao Frente Amplio liderado pelo Partido Comunista: a Lista del Pueblo, terceira maior força na constituinte, essencialmente carrega as mesmas bandeiras democrático-liberais do time de independentes referido e seus representantes em geral professam acentuado autonomismo.

Desse modo, o que se nota é que diante da ausência de um partido revolucionário, as insatisfações que tomaram as ruas ao final de 2019, ao invés de levarem a uma conquista do poder pelos trabalhadores ou pelo menos a um fim do governo Piñera, puderam ser canalizados para futuros trabalhos em uma constituinte guiada pela moderação política pelos próximos dois anos. A atuação da Concertación, dos partidos de direita e do PC, que controla a maior sindical do país, inclusive são apontados como grandes fiadores da empreitada política em curso. Essas agremiações desempenharam função curiosamente análoga àquela que exerce a esquerda parlamentar no Brasil do Bolsonaro: em última instância, aspirando a ganhos institucionais vindouros, tornaram-se verdadeiros fiadores tácitos de um governo moribundo. Os partidos da ordem chilena, inclusive os de esquerda, optaram por salvar Piñera em seus possíveis últimos suspiros.

 Nesse sentido, é bastante sintomático que os grandes jornais burgueses brasileiros tenham-se apressado em celebrar o incremento da representação feminina e indígena no processo em curso, e não tenham manifestado asco pela recente inflexão no país sul-americano. A burguesia no Chile, igualmente, não tem expressado grande ansiedade com relação à questão, pois esperam que no máximo haverá o advento de previdência, saúde, educação e alguns outros serviços públicos. É, portanto, no mínimo inexato declarar que testemunhamos naquele país uma esmagadora vitória contra a direita, pois não somente as razões para antagonismo entre trabalhadores e burguesia não estão aflorados como também até mesmo os presos políticos do processo insurrecional, que foram linha de frente no avanço popular, seguem encarcerados aos milhares e seguem tendo suas prisões inclusive amparadas por discursos conservadores de constituintes de expressiva votação.

 As convicções da maioria dos eleitos para a tarefa de elaboração da nova constituição, que sequer é plenamente soberana, pois submissa aos tratados internacionais em vigor e à jurisdição do tribunal constitucional chileno, ademais, são aparentemente bastante gelatinosas. O fato é que aquilo que denominam como independentes é, de fato, uma heterogeneidade enorme, um mosaico de cores inimagináveis, composto até por figuras pinochetistas soft como Teresa Marinovic. Essa integrante constituinte, cuja presença contribui para o alcance da tão celebrada igualdade de gênero na constituinte, por exemplo, obteve uma das mais expressivas votações e ilustra bem a indefinição da situação atual: mesmo sendo figura que notoriamente festejava a repressão dos carabineiros, agora ensaia um discurso de atuação de ambientalista na constituinte, não tão essencialmente díspar das proposições da Lista del Pueblo, da Frente Amplio ou dos Independientes no Neutrales.

Os constituintes indígenas não estão em descompasso com essa situação geral.  Por sua vez, têm perspectivas de implementar finalmente um estado plurinacional no Chile, nos marcos da Convenção 169 da OIT, como na Bolívia e em outros países do continente. Tal fato, sem dúvida, representará um ganho para os povos originários, muito embora organizações que lhes representam em grande medida tenham expressado ceticismo com relação ao processo constituinte e dele não tenham participado. Entre setores indígenas que optaram pela participação há grandes esperanças, por exemplo, por parte dos Mapuche em relação à possível conquista de autonomia e de empoderamento diante da sanha das corporações madeireiras, da salmonicultura e de outros setores capitalistas que disputam suas terras. Ainda que a representação constituinte assegurada a povos indígenas, que são cerca de 12% da população chilena, seja de fato uma grande conquista inédita, tomar as perspectivas do advento de um Estado Plurinacional como a solução dos problemas é, porém, bastante precipitado. 

A mídia e a esquerda geralmente não têm hesitado em celebrar a perspectiva de representação institucional assegurada aos povos originários.  Muitos dos representantes indígenas, porém, como ocorre com a maioria dos demais constituintes chilenos, padecem de falta de demarcação ideológica, por mais que tenham os indígenas exercido grande protagonismo no avanço popular. Analistas mais atentos da questão já vêm enfatizando inclusive que uma reviravolta na atuação das corporações madeireiras estaria em gestação e que tais empresas já não estariam mais dispostas a atuar diretamente por intermédio de parlamentares de direita, esperam agora administrar seus interesses por representantes indígenas. O adensamento institucional da representação indígena, por conseguinte não conformará per se verdadeiro antídoto contra o avanço do capitalismo sobre os povos indígenas do Chile. Há uma disputa em curso.

Há, de fato, a instauração de uma situação em que uma Assembleia Constituinte, que goza de muito maior credibilidade popular e passa a funcionar como caixa de ressonância das ruas, passa a conviver com um desgastado parlamento eleito pelo voto do antigo sistema. Tal situação ainda poderá propiciar grandes conquistas ao povo chileno. De forma alguma, porém, pode-se falar que estamos testemunhando o retorno de algo remotamente análogo ao que foram os cordões industriais e o caminho ao duplo poder que esses insinuaram na época de Allende. O que está em curso, por ora, é a possível constitucionalização de um sistema de saúde, educação e previdência públicos, levado a cabo por representantes sem clareza programática, em meio a um povo que, revoltado, segue também morrendo em massa devido à pandemia e encarando os efeitos da crise do capitalismo global.

Sabemos o abismo existente entre enunciados constitucionais e a realidade, que insiste em nunca nascer a partir de belos dispositivos jurídicos. O caso da Constituição de 1988, tão conhecido dos brasileiros, é um exemplo eloquente nesse sentido: teve originalmente em seus dispositivos muito daquilo que os chilenos hoje buscam conquistar após a devastação pinochetista, mas não foi capaz de erigir o primeiro caso de um Estado de Bem-Estar Social em meio ao subdesenvolvimento e à dependência. É possível que o Chile siga a mesma senda e que o objetivo de atingir patamares franceses de bem-estar se tornem meras promessas jurídicas, caso o período pré-revolucionário aberto não tenha coerente prosseguimento e a burguesia chilena tenha sucesso em cooptar e legitimar devidamente a nascente geração representantes políticos chilenos.

Os personagens militantes do PC, agora celebrados por nichos da esquerda brasileira que têm algum apego emotivo/institucional por essa que grife partidária, como Jadue e Hassler, tampouco parecem sinalizar algo muito distinto dessa tônica geral, muito embora compareçam na mídia como verdadeiras personificações de uma ruptura definitiva com o pinochetismo.  Ambos não têm como orientação mais que a defesa de melhores serviços públicos, atenção à população mais vulnerável e a denominada superação do neoliberalismo. Não há por parte desses qualquer sinalização de que busquem levar adiante um programa socialista para o Chile. O antagonismo foi devidamente limitado à contraposição entre mercado e Estado, neoliberalismo e Estado de bem-estar social. O antagonismo entre trabalho e capital, por ora, segue em segundo plano no discurso daqueles que representarão uma drástica mudança no cenário político chileno.

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