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A prisão como fábrica

Amanhã (06/10) ocorrerá na Bolsa de Valores do Brasil (B3), em São Paulo, um leilão de privatização do Complexo Prisional de Erechim, no Rio Grande do Sul. Não se trata do primeiro caso de privatização de presídios no Brasil, que, de um total de 1.424 unidades prisionais, conta hoje com mais de 30 sob gestão privada. A importância deste leilão reside antes no fato de que o Presídio Erechim representa o projeto piloto do governo federal no sentido de incentivar a privatização sistemática da rede carcerária brasileira.

Em abril deste ano o vice-presidente Geraldo Alckmin assinou um decreto (no 11.498/23)[i] no qual inclui o sistema prisional e outros setores (segurança pública, educação, saúde, saneamento, etc.) no pacote de incentivos tributários para a formação de Parcerias Público-Privadas – medida inclusive alardeada em propaganda do próprio governo federal sobre as suas “conquistas” nesses 6 primeiros meses de mandato[ii]. Na prática, trata-se da abertura do mercado prisional brasileiro na bolsa de valores, sob a égide do Estado de Direito, e tendo o próprio poder público como generoso credor, por meio do BNDES.

No dia 20 de setembro foi divulgada uma nota técnica[iii] conjunta de 86 entidades, dentre as quais a Pastoral Carcerária Nacional, contra os recentes incentivos do governo federal para a transferência da gestão dos presídios à iniciativa privada. A nota dispõe de dados e argumentos suficientes contra a privatização dos presídios, desde as limitações jurídicas e constitucionais, passando pelas experiências concretas de presídios privados já existentes no Brasil (nos quais é realçada a ineficiência, a falta de transparência e a violação de direitos humanos), e abordando a nefasta experiência do mercado prisional estadunidense, contra a qual tem agora início inclusive um processo de reestatização dos presídios naquele país.

Não nos cabe aqui repisar os dados e argumentos desenvolvidos de forma competente nesta nota técnica, mas apenas chamar atenção para dois importantes tópicos relativos à acumulação de capital e ao papel do Estado.

A repressão como fonte de lucro

Sabemos que nas sociedades em que reina o modo de produção capitalista o Estado é um órgão de dominação de classe. Neste sentido, duas das suas principais atribuições são: funcionar como um aparelho repressor da classe trabalhadora, mas, também, funcionar como um balcão de negócios para a classe burguesa.

Na sua luta contra a classe trabalhadora, para assegurar o seu domínio e os lucros extraídos da exploração do trabalho, a classe burguesa precisa recorrer constantemente à violência. A função repressiva do Estado (o exército, as polícias, os tribunais, as prisões, etc.) é, portanto, a mais basilar de toda a sua estrutura. Garantida essa função, no entanto, o Estado também funciona como um verdadeiro balcão de negócios. De um lado, como espaço privilegiado na concorrência entre capitalistas – o poder político se torna aqui uma “vantagem competitiva” –; mas, de outro lado, também como espaço privilegiado da grande burguesia na concorrência contra a classe trabalhadora. No atual período, em que o “livre mercado” se tornou palavra vazia diante da concentração e centralização do capital em grandes monopólios, e em que o movimento incessante de expansão do capital exige a abertura de novos mercados, o próprio Estado passa a funcionar como fonte de lucro em detrimento dos direitos conquistados pela classe trabalhadora. Por isso presenciamos hoje o avanço da iniciativa privada sobre os serviços públicos, bem como o uso do fundo público em investimentos privados.

Neste contexto, e diante do decreto que regulamenta e incentiva a privatização da segurança pública e do sistema prisional no Brasil, o próprio aparelho repressivo se torna mercadoria no balcão de negócios do Estado. Como justificativa oficial, seguindo a cartilha da reforma liberal do Estado, a imprensa burguesa mobiliza a batida retórica de que o Estado é por demais oneroso, e que as parcerias público-privadas seriam a solução em termos de eficiência e economia. No caso específico do processo de privatização do presídio Erechim, o próprio BNDES soltou uma nota onde fala de “reduzir custos” e “diminuir o déficit no sistema prisional”[iv].

Todavia, em pesquisa realizada pela Pastoral Carcerária em 2014 sobre as experiências de presídios brasileiros sob gestão privada, fica demonstrado que, nos casos observados, longe de representar uma economia para o Estado, houve um acréscimo de gastos estatais com repasses às empresas gestoras. “Conforme dados disponibilizados pelo CNJ, uma pessoa presa custa, em média, 1,8 mil reais por mês aos cofres públicos. Por outro lado, o custo médio de uma pessoa presa nas unidades sob gestão privada e de 4 mil, chegando a mais de 5,3 mil em estabelecimentos específicos”[v]. Esse aumento de custo estatal nos presídios privatizados é confirmado pela experiência estadunidense, sobre o qual estudos[vi] demonstram que, se o objetivo é a “responsabilidade econômica”, maior economia seria feita mantendo os presídios sob administração pública direta.

Sabemos, no entanto, que o verdadeiro objetivo para a privatização dos presídios, assim como para a privatização de qualquer empresa estatal, não é a economia dos gastos públicos, mas a economia dos gastos privados. Desde empresas cuja custosa infraestrutura foi construída com dinheiro público, até subvenções públicas para investimento privado, inclusive por meio de isenção ou de redução de impostos, a lógica permanece a mesma: o Estado entra com o investimento, e os capitalistas entram com… o bolso. O projeto do BNDES para a PPP do Presídio Erechim, por exemplo, estima a subvenção pública de R$ 150 milhões para a empresa gestora; incluindo os serviços de manutenção das instalações, limpeza e apoio logístico na movimentação das pessoas presas, em uma concessão pública com 30 anos de duração.

Essa rapinagem capitalista do fundo público é característica da atual fase monopolista do capitalismo no mundo inteiro. Derivado do processo de tentativa de superação das suas sucessivas crises, e da sua necessidade intrínseca e infinita de expansão da acumulação, o capitalismo monopolista necessita combinar diferentes mecanismos de exploração dos seus trabalhadores. Além da extração de mais-valia em sua forma absoluta (pelo prolongamento da jornada de trabalho), e de sua forma relativa (sobretudo pela intensificação do ritmo de trabalho), a classe trabalhadora brasileira também sofre a expropriação de parte do seu trabalho necessário para repor sua força de trabalho, isto é, o fundo necessário de consumo dos trabalhadores se converte em um fundo de acumulação de capital. O que nos leva ao segundo e principal ponto digno de destaque acerca da privatização dos presídios no Brasil.

A superexploração institucional

No capitalismo, o valor do salário do trabalhador não é calculado pela totalidade do seu tempo de trabalho, mas pelo valor mínimo que custará ao trabalhador recompor as suas forças a fim de voltar ao trabalho no dia seguinte, no mês seguinte e etc. Ou seja, em condições normais, seu salário equivale ao valor da soma de mercadorias básicas (alimento, vestuário, gás, luz, aluguel, etc.) necessárias para a sua mera subsistência.

Vale aqui salientar ainda que, no modo de produção capitalista, a relação econômica mais “justa” entre trabalhador e capitalista é já, desde o início, uma relação de exploração. A “justiça” dessa relação, muito mais frequente nos países centrais do que nos periféricos, consiste no fato de que o capitalista paga pela força de trabalho o seu valor integral. Ora, o valor de toda e qualquer mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. O mesmo ocorre com a mercadoria força de trabalho, cuja produção consiste em sua própria reprodução ou manutenção, para a qual todo indivíduo necessita de certa quantidade de meios de subsistência em forma de mercadorias. Sendo assim, se o salário que o capitalista paga ao trabalhador corresponde ao valor que este necessita para comprar em mercadorias os meios de sua subsistência e, assim, recompor as forças de sua capacidade diária de trabalho, podemos dizer que, aos olhos da lei do valor, o salário é “justo”. Claro está, portanto, que a duração total da jornada de trabalho é composta pelo tempo de trabalho necessário, em que o trabalhador restitui em mercadorias (ou em serviços) o salário que o capitalista lhe adiantou, mais o tempo de trabalho excedente, em que o trabalhador basicamente trabalha de graça para o capitalista, de onde este extrai seu lucro.

Esta é, portanto, a exploração “justa”, ou normal, do trabalho pelo capital. Mas, no atual período, sobretudo no capitalismo periférico e dependente, como é o caso do Brasil, ocorre frequentemente modalidades, digamos, “injustas” de exploração. Aqui, como foi dito, não raro a força de trabalho é remunerada a um preço inferior ao seu valor integral, o que, juntamente com outros fatores, configura uma superexploração. Além disso, nos países em que a força de trabalho é sistematicamente remunerada abaixo do seu valor, os aparelhos repressivos do Estado assumem um protagonismo muito maior do que nos países centrais, devido à necessidade de manter sob o controle a classe trabalhadora. Agora, vemos como esse mesmo aparelho repressivo pode se tornar fonte de extração de mais-valia.

E aqui chegamos ao nosso ponto. O processo de privatização do sistema prisional representa a institucionalização da superexploração do trabalho. Isso significa que, além da pilhagem do fundo público, interessa aos capitalistas a força de trabalho dos presidiários, a qual, agora por lei, poderá ser comprada abaixo do seu valor. Isso porque as condições de trabalho não serão ali regidas pela CLT, mas sim pela Lei de Execução Penal (LEP), de 1984. Se a Constituição “garante” que nenhum trabalhador possa ganhar menos de um salário-mínimo, a LEP assegura que os presos podem ganhar ¾ de um salário-mínimo, sem benefícios. Ou seja, um preso sai até 54% mais barato do que um trabalhador assalariado não preso e com registro em carteira, além de não possuir nenhum direito trabalhista. Levando em conta que uma das causas contra-arrestantes da queda tendencial da taxa média de lucro da classe capitalista é precisamente a compressão do salário abaixo do seu valor, a privatização dos presídios e a exploração da força de trabalho dos presos interessam a todos os capitalistas, não apenas às empresas concessionárias dessas PPPs.

Sobre isso, o caso estadunidense é indecorosamente exemplar. Nos últimos anos, ao menos 37 dos 50 estados dos EUA regulamentaram a contratação de mão-de-obra prisional por empresas privadas. A lista de empresas que montaram operações dentro das prisões inclui: Microsoft, IBM, Boeing, Motorola, AT&T, Wireless, Texas Instrument, Dell, Compaq, Honeywell, Hewlett-Packard, Nortel, Lucent Technologies, 3Com, Nintendo, Starbucks, Intel, Northern Telecom, TWA, Nordstrom’s, Revlon, Macy’s, Pierre Cardin, Target Stores, Eddie Bauer, Victoria’s Secret e muitas outras. Apenas três grandes monopólios do setor, a Corrections Corporation of America (CCA), The GEO Group (GEO) e a Management and Training Corporation (MTC), possuem mais de 200 unidades prisionais. Além disso, por meio de grupos de lobby, exercem forte influência sobre legisladores para assegurar que suas instalações estejam constantemente lotadas.

A lógica capitalista por trás desse processo é tão cruamente direta quanto irrefutável. Primeiro, por meio da força do Estado, insere-se no mercado de trabalho uma mercadoria muito mais barata (a força de trabalho dos presos) que proporciona à classe capitalista um excedente de trabalho muito maior; em seguida, consequentemente, também por meio da força do Estado, aumenta-se progressivamente este contingente específico de trabalhadores (isto é, a população carcerária). Tudo isso, vale ressaltar, no mesmo movimento em que se opera a repressão a qualquer movimento contestatório. Finalmente, a repressão aos trabalhadores se confunde com a superexploração do trabalho, simplificando o caráter de classe do Estado.

A luta contra as privatizações

O incentivo do governo Lula-Alckmin ao processo sistemático de privatização da segurança pública e do sistema prisional representa o mais desabrido e ousado avanço da burguesia sobre classe trabalhadora, e deve ser combatido nesses termos. Nenhuma ameaça fascista, real ou potencial, justifica que a esquerda deixe de se posicionar firmemente contra este ataque, e de explicar aos trabalhadores o caráter de classe dessas medidas de governo.

No processo de reorganização da classe trabalhadora, de retomada da sua independência política, o Partido dos Trabalhadores continua desempenhando um papel de obstáculo. Cabe os partidos e organizações que fazem oposição à esquerda ao governo Lula deixar claro aos trabalhadores que o presidente não passa de um instrumento, voluntário ou relutante, dos interesses políticos da grande burguesia; que a lógica sólida e contínua que faz avançar as privatizações ignora quem ocupa o Palácio do Planalto; que esta luta é uma luta de classe.

A luta contra as privatizações não pode ser vitoriosa enquanto permanecer fragmentada em lutas parciais de determinadas categorias de trabalhadores contra um ou outro processo de privatização, mas apenas enquanto uma luta unificada dos trabalhadores de todas as categorias contra a política econômica liberal em sua totalidade, e, consequentemente, contra a dominação burguesa.

 

[i] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11498.htm

[ii] Disponível em: https://twitter.com/deccache/status/1684402331515768832?t=-mwEEVWvjvEfg6wJICec2A&s=08

[iii] Disponível em: https://static.poder360.com.br/2023/09/Nota-Privatizacao.pdf

[iv] Disponível em: https://parcerias.rs.gov.br/presidio-erechim

[v] Cf. Nota Técnica… p. 10-11.

[vi] Cf. Nota Técnica… p. 15.

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