Centralidade do Trabalho – maio de 2021
A Crise Capitalista
A pandemia de Covid-19 acentuou um sintoma predominante em parte significativa da intelectualidade brasileira de esquerda: intensificou o imediatismo politicista e afastou-a da análise dos movimentos de acumulação global de capital. Muitas pessoas assumiram a versão burguesa de que estamos vivendo uma “crise econômica provocada pelo novo coronavírus”, o que não é verdade caso se observe com atenção os ciclos do sistema capitalista.
A rigor, os anos de 2018/2019 marcaram o encerramento do ciclo de acumulação de capital iniciado após a crise de 2008. Os fluxos internacionais de investimento direto caíram quase 20% em 2018, passando de 1,47 para 1,2 trilhão de dólares. Por sua vez, o ritmo de crescimento do comércio mundial desacelerou de 2,7% em 2018 para 1,2% em 2019, o que representa um recuo de mais de 50% no desempenho da realização internacional de mais-valia.
Portanto, desde uma perspectiva totalizante e de longa duração, é possível afirmar que o mundo já vinha em uma sequência de instabilidade política e desaceleração econômica. Neste sentido, a pandemia foi responsável por antecipar, expandir e intensificar a eclosão de uma crise que já se gestava no sistema internacional. Tal detalhamento não se dá por mero preciosismo teórico: não atrelar a crise econômica diretamente à pandemia significa que, uma vez que a Covid-19 seja superada, nada indica que a crise o será.
Do ponto de vista político, a pandemia comprovou que o paradigma liberal e o arcabouço institucional da governança global não são mais funcionais ao imperialismo. Num primeiro momento, testemunhou-se um apagão de equipamentos médicos, com preços exorbitantes e uma horda de confiscos de mercadorias entre Estados nacionais, violando sistematicamente princípios acordados no direito internacional. Num segundo momento, assistiu-se à especulação em torno das vacinas. Pesados financiamentos públicos para que pesquisas fossem realizadas e o desenvolvimento de imunizantes em tempo recorde não deram conta de amenizar o sofrimento de bilhões de pessoas no mundo. A gestão capitalista da saúde não permite que o fruto do trabalho coletivo dos pesquisadores chegue em massa à população.
O agravamento da pandemia nos EUA, aliado a um ambiente conjuntural de desemprego galopante, condicionou a vitória eleitoral de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos. A despeito do frisson gerado em setores da esquerda brasileira é preciso afirmar categoricamente: o novo governo dos EUA não representará qualquer mudança qualitativamente positiva para a América Latina e para o Brasil em específico. Joe Biden iniciou seu governo com pouquíssimas alterações no que se refere à política internacional de seus antecessores. Adiou uma vez mais a retirada das tropas do Afeganistão, promoveu bombardeios na Síria e a primeira reunião oficial com a China foi atravessada por acusações e impasses. Excetuando-se os simbólicos retornos à Organização Mundial da Saúde e ao Acordo Climático de Paris, mantiveram-se as políticas que já vinham em marcha com Donald Trump.
A injeção de dinheiro do novo governo dos EUA na economia, acompanhada de medidas que buscam corrigir as profundas distorções na relação capital-trabalho naquele país, tais como o incentivo à sindicalização burocratizada, as obras públicas de infraestrutura e a taxação de grandes capitalistas tampouco são medidas que devem nos confortar. Se é verdadeiro que tais ações podem contribuir no arrefecimento da luta de classes no centro do sistema, é igualmente verdadeiro que nenhuma delas será importada automaticamente para a periferia.
Especialmente no caso dos trilhões de dólares despejados na economia estadunidense, observa-se que se trata do aprofundamento de um mecanismo que já vem sendo largamente utilizado desde a própria crise de 2008, cujo principal resultado foi ser praticamente todo absorvido pelas bolsas de valores de todo o mundo. Uma inflação de ativos sem precedentes bancada pelo Estado e reeditada sucessivamente, é isto que estamos a presenciar no momento.
A Atual Conjuntura Brasileira
O aprofundamento do abismo social é a faceta mais evidente que emerge da dinâmica da crise capitalista global no Brasil. O país atualmente conta com quase 38 milhões de subocupados (em torno de 15 milhões de desempregados; e quase 6 milhões de pessoas que deixaram de procurar emprego diante do desanimo acumulado após anos sem colocação no mercado de trabalho). Mesmo para os que permanecem ocupados, ampliam-se os empregos de baixa remuneração, desprotegidos de qualquer legislação trabalhista e social, onde a população brasileira empobrece à olhos vistos. A fome e a miséria – a insegurança alimentar chega à 55% dos brasileiros – passam a ser a tônica da nação, que aparecem diariamente nas ruas das grandes, médias e pequenas cidades do país. Por fim, nos vemos diante de mais de 400 mil mortos acometidos pela pandemia da Covid-19, número que certamente deve crescer aceleradamente enquanto Jair Bolsonaro permanecer no governo.
Por outro lado, o país continua sendo um celeiro de novos bilionários. O crescimento da renda concentrada nas mãos destes bilionários brasileiros foi de 71% entre 2020 e 2021. Hoje, os 65 bilionários do país concentram R$ 1,2 trilhões. Tal situação não é fruto do acaso, muito menos um efeito exclusivo da pandemia. A segunda década do século XXI (2011-2020) já se mostra uma nova “década perdida” para a massa da população brasileira. Os dados da média do PIB per capita apontam que a última década é a pior dos últimos 100 anos – uma queda média de 0,6% ao ano. Isso significa que nós brasileiros encerraremos em 2020 um decênio pior do que os anos 80 do século XX – atravessados pela hiperinflação, pela reestruturação produtiva, pelo desemprego estrutural e pela primeira fase das reformas liberalizantes da economia brasileira.
Diante de uma população esgotada após quase uma década de degradação material e moral em sua vida concreta, emergiu o capitão Messias, com seu fajuto discurso redentor de que viria “mudar tudo que está aí”. Discurso que, de forma contraditória, expressa duas facetas da miséria em que a população brasileira se encontra. Por um lado, expressa a miséria de uma classe trabalhadora degradada por anos de sofrimento e sem encontrar uma perspectiva organizada de esquerda com caráter revolucionário e socialista. Por outro lado, expressa um legítimo grito de indignação de uma população que não aguenta mais, cotidianamente, ser privada da riqueza que ela mesma produz. Enquanto vê os políticos tradicionais banqueteando com os bilionários, sente na pele o sofrimento de ver sua família passar fome. “Mudar tudo que está aí”, essencialmente no âmbito do ataque à propriedade privada capitalista e em defesa dos interesses dos trabalhadores, portanto, deve ser o centro de qualquer programa partidário que pretenda, de forma séria, representar os anseios da classe trabalhadora na próxima década.
Isso é fundamental pelo fato de que Bolsonaro, e qualquer governo que se vincular aos interesses do grande capital, não tem qualquer capacidade de resolver a crise capitalista que se aprofunda no país. Decorre do momento atual três tendências de desenvolvimento da conjuntura brasileira para os próximos anos: 1) estagnação da economia; 2) centralização de capital mediante, por um lado, ampliação de bilionários e, por outro, falência de setores do capital – especialmente aqueles que empregam maior volume relativo de trabalhadores; e 3) continuidade da ampliação do abismo social – desemprego, baixa de salários, pobreza, violência, fome, etc. – permanecendo todas as formas de agressão contra a classe trabalhadora – manutenção das contrarreformas.
Diante disso, nenhuma confiança pode ser depositada na possibilidade de mudar esse quadro com base em acordos com a burguesia. Ela é a principal interessada em manter essas tendências em desenvolvimento. Também não há que alimentar nenhuma ilusão na forma política parlamentar ou presidencial, como se esta pudesse alterar a atual correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora. A energia de um partido que queira realmente incidir na realidade em favor da construção da revolução e do socialismo, portanto, deve se dar na necessidade de mobilização, organização e politização da classe trabalhadora.
As Lutas de Classes no Brasil
A crise que emergiu com força a partir de 2012, não deixou de contar com a oposição da classe operária. Depois de longos 15 anos (1997-2011) de reduzido número de greves, a conjuntura virou justamente a partir de 2012. Não apenas voltamos aos patamares grevistas do último ciclo de expansão (1986-1996), mas ultrapassamos o auge do período anterior (1.962 greves em 1989) durante longos quatro anos consecutivos (2.057, 2.085, 1.964 e 2.114 greves em 2013, 2014, 2015 e 2016, respectivamente). Ou seja, longe de um período de onda conservadora, vivenciamos nesta última década uma forte expressão da centralidade do trabalho na sociedade capitalista e do poder operário de parar a produção. Não apenas greves do funcionalismo público, mas também um grande crescimento das greves na esfera privada e nas empresas estatais.
Em resumo, a classe trabalhadora emergiu de um longo período de inatividade política e passou a se movimentar largamente nos últimos anos, vivendo na pele o processo de desalienação e educação da classe trazidos pela participação nas greves. Por outro lado, esse movimento que ocorreu no subterrâneo da produção da riqueza está na base das explosões populares de significado amplo, que ocorreram justamente no mesmo período, tal qual as manifestações de 2013 e as diferentes marchas que ocorreram nos anos seguintes.
A classe, como pode ser visto, esteve longe de estar apática neste último ciclo. Movida pela indignação diante da piora sistemática das suas condições de vida, apresentou oposição, na medida de suas forças e de sua consciência, ao ataque do capital. O ponto auge desse processo foi o primeiro semestre de 2017, que culmina esse “despertar” do movimento operário brasileiro no enfrentamento contra a contrarreforma da previdência de Michel Temer. Verificamos ali uma expressiva mudança de qualidade na conjuntura de greve de massas no Brasil. O acúmulo quantitativo de greves entre 2013 e 2016 acabou por transformar-se qualitativamente no processo de enfrentamento à proposta de contrarreforma da previdência. Os trabalhadores se mobilizaram não apenas pelas questões imediatas e parciais, mas passaram a agitar em nome de uma questão de ampla magnitude.
Entretanto, apavoradas diante da perda do controle da classe que, naquele momento, superava o horizonte eleitoralista estreito das centrais sindicais – que já estavam interessadas na eleição de 2018, na grande ilusão de eleger Lula novamente –, as direções do movimento recuaram. Assim, a principal estratégia de desmobilização da ascensão da luta de classes foi a de subverter a pauta que até então conduzia as mobilizações. Se no início do ano, tratava-se de combater a contrarreforma da previdência e denunciar a podridão do sistema, passaram a propor as “Diretas Já” e a defesa abstrata da democracia. Diante disso, a classe imediatamente olhou com desconfiança para os dirigentes sindicais. Já haviam rompido com o petismo no impeachment de Dilma, e votaram em massa contra as candidaturas petistas nas eleições municipais do final de 2016 (as cidades onde o petismo foi mais rechaçado foram justamente aquelas de maior perfil operário). O ímpeto da sociedade era de mudança real, “mudar tudo que está aí”, não de reconstituição da velha forma de governo.
A energia acumulada no processo de agitação, ao não mudar de forma e adquirir conteúdo efetivamente revolucionário, tratou de se dissipar. O que ficou do processo foi um sentimento de profunda frustração no segundo semestre de 2017. Não por acaso, a contrarreforma trabalhista foi aprovada sem nenhuma oposição da classe. Diante disso, uma inflexão conjuntural se registrou. Primeiramente, a falência das direções sindicais e partidárias da esquerda, deformadas por décadas de conciliação de classes e de enclausuramento da luta ao âmbito jurídico e parlamentar, permitiu o avanço decidido de Bolsonaro como o falso redentor de 2018. Em segundo lugar, essa incapacidade de dar um salto de qualidade na luta de classes, aliado às derrotas acumuladas, fizeram com que o próprio movimento de ascensão da luta de classes encontrasse um momentâneo refluxo. A partir de 2018, já é possível perceber a queda do número de greves – 1.453 greves em 2018, 1.118 em 2019 e apenas 642 em 2020. Também é possível perceber o esvaziamento da própria mobilização de rua, que ainda não conseguiu encontrar um ponto de centralização para fazer avançar uma oposição de rua ao governo Bolsonaro.
Tal momento de refluxo, no entanto, não tem que ser entendido como derrota definitiva da classe, muito pelo contrário. O que existe no Brasil, isso sim, é uma dissipação da luta de classes. Diante da deterioração de suas condições de vida, e na ausência de organizações com direções revolucionárias, a luta de classes avança e se dissipa, sem conseguir encontrar um elemento centralizador e catalisador do processo. Isso se deve a um fato distintivo da atual conjuntura da luta de classes no Brasil: não há um partido revolucionário da classe trabalhadora.
A Hegemonia Petista sobre os Trabalhadores
É indiscutível o fato de que o Partido dos Trabalhadores e sua principal liderança, Lula, ainda detenham, entre as agremiações partidárias, a hegemonia da inserção no seio da classe trabalhadora organizada. São ainda significativas as massas trabalhadoras, lideranças sindicais, organizações de base das igrejas, enfim, nas diversas formas em que a classe ainda preserva alguma forma de organização, em que o nome do partido ainda esteja enraizado. A miséria provocada pelo agravamento da crise capitalista, o aumento da fome e desemprego e a incapacidade de Bolsonaro cumprir suas promessas de mudança, corroboram para a construção entre estas massas de uma visão saudosa dos tempos em que o PT governou o país, revigorando a vã esperança de que aqueles tempos poderão ser resgatados a partir de 2022.
Esta solidez que o PT ainda consegue demonstrar, expressa eleitoralmente na obtenção da maior bancada da Câmara Nacional, além de sua expressão nacional, sequer sonhada pelos partidos que compõem o espectro da esquerda, tem sido o argumento sempre levantado quando se trata de se pensar a composição de frentes políticas para as disputas dos pleitos eleitorais nas diversas esferas do Estado brasileiro. Na disputa pela hegemonia dessas frentes o PT sempre sai com expressiva vantagem e, não raras vezes, Lula expressa isso sem nenhuma ressalva, mesmo referindo-se aos possíveis aliados, tratados como expressões secundárias de uma unidade capitaneada por ele e seu partido.
Por estas condições, já há algum tempo, o PT tem se tornado um obstáculo para o surgimento de novas vanguardas políticas da classe trabalhadora. Não só pela própria força do PT, mas porque, também, o canto de sereia petista está sempre a embalar os sonhos de muitas lideranças da esquerda de encontrar um atalho para a obtenção de uma quirela de poder. O ponto de partida é sempre o mesmo: o PT é a maior força de esquerda e nenhuma frente pode se constituir sem a sua participação que, necessariamente, será hegemônica. É, portanto, a própria hegemonia petista que tem que ser colocada à prova se quisermos projetar alguma alternativa para além dela, seja no campo eleitoral, seja, principalmente, fora dele.
O viés politicista dos governos petistas sempre priorizou as alianças políticas que assegurassem sua governabilidade. Entretanto, apesar de todo esforço na construção dessa sustentação parlamentar, nem Lula, nem Dilma, em algum momento justificaram essa política apresentando algum projeto de reforma que ao menos arranhasse o estatuto da grande propriedade capitalista ou da nossa condição de dependência econômica. Menos ainda poderia se esperar dos governos petistas no que diz respeito à construção de mecanismos de participação popular nas lutas políticas. O reformismo sem reformas, sempre feito pelo alto, nunca encontrou as “correlações de força” favoráveis à realização das mudanças que pudessem apontar para uma verdadeira transformação do país. Naquelas condições de expansão capitalista limitou-se a reservar parte dos recursos de que dispunha à expansão do endividamento das famílias – base da ideologia da “nova classe média” como sucedâneo para a consciência de classe – e à realização dos programas sociais que não afrontassem a ordem social do capital.
Com Lula novamente candidato, as mesmas ilusões são oferecidas aos trabalhadores em condições, entretanto, absolutamente diferentes e mais adversas. “A arte do possível”, como Lula sempre definiu sua forma de fazer política, nas presentes condições em que a burguesia leva ao extremo os ataques contra os trabalhadores, só poderá operar na contenção dos movimentos contestatórios e no prosseguimento do desmantelamento da organização dos trabalhadores enquanto classe.
Ainda que preserve força eleitoral, o PT põe e repõe, a cada instante, as premissas da derrota política e ideológica dos trabalhadores. Qualquer aproximação com essa política só pode se dar por oportunismo eleitoral. Para as forças de esquerda que realmente pleiteiam a construção de uma outra sociedade, a submissão à lógica petista representará, necessariamente, uma política de traição à classe trabalhadora. Por isso, o combate à hegemonia petista sobre os trabalhadores organizados é uma das tarefas mais imediatas da esquerda revolucionária.
Contudo, ao lado desse desafio, não menos urgente é o combate contra as ideologias burguesas que se entranharam nas últimas décadas no seio dos partidos de esquerda. Se, por um lado, a hegemonia petista contribuiu para o abandono do horizonte revolucionário pelos partidos de esquerda, por outro, a influência de origem acadêmica do irracionalismo contemporâneo por meio das teorias pós-modernas rebaixou a luta desses partidos aos limites de uma mera transgressão resignada à ordem burguesa.
As Ideologias Burguesas dentro da Esquerda
Desde o último terço do século passado estamos mergulhados numa falsificação teórica progressista que apresenta armadilhas difíceis de combater e, literalmente, desarmar, especialmente em seu aspecto ideológico: as teorias da pós-modernidade. Elas se abrigam no escopo teórico mais abrangente do irracionalismo contemporâneo, este sim, vigente praticamente desde o início do século XX.
A pós-modernidade se apresenta como uma teoria crítica. No entanto, como não apresenta alternativa concreta de futuro para as lutas econômico-políticas para além do capital, resulta socialmente numa crítica regressiva, pois articula narrativas e discursos fragmentados que, de forma platônica, chegam a apresentar-se como radicais, mas ao fim e ao cabo estão irremediavelmente acoplados a uma construção teórica contrarrevolucionária de complicada explicitação, tanto no plano ideológico, quanto no plano prático. Isso tem, via de regra, confundido as forças de esquerda, tornando-as incapazes de apresentar saídas para a construção da efetiva emancipação da classe trabalhadora.
A luta ideológica é um importantíssimo momento das lutas de classes, pois as ideias dominantes de uma época são sempre as ideias da classe dominante. Portanto, se as ideias dominantes de nossa época correspondem a esse predomínio hegemônico das forças materiais do capital, devemos desconfiar dos indicativos irracionalistas que permeiam a nossa luta contemporânea de esquerda, em especial, a lógica identitária, fragmentada e pós-moderna, que hegemoniza grande parte das lutas contra opressões reais, contra as quais é obviamente necessário combater.
O resgate do papel da centralidade de classe e da centralidade do trabalho é fundamental para a eficácia teórica e prática das lutas atuais de esquerda, especialmente a esquerda que não deseja apenas mudanças, mas efetivamente a transformação social revolucionária, pautando a transição socialista. Com isso, a radicalidade política torna-se uma necessidade premente no mundo contemporâneo. Mas essa radicalidade não deve se apresentar apenas por uma linguagem radical, no plano do discurso, e pela valorização incondicional do lugar que a fala ocupa. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Não significa apenas ter uma atitude individual de rebeldia ou de transgressão diante das opressões do mundo contemporâneo. Significa, em primeiro lugar, compreender a posição ocupada na luta de classes e na exploração daí decorrente.
Essa posição de classe não é definida arbitrariamente por uma escolha do sujeito, mas pela propriedade (ou não) que ele tenha dos meios de produção vigentes. Os proprietários privados dos meios de produção estão posicionados de um lado concreto da luta de classes, muito bem definido materialmente. A burguesia não tergiversa sobre isso. Os não proprietários dos meios de produção são aqueles que têm apenas sua força de trabalho para vender e estão, materialmente, em completa oposição aos proprietários privados no âmbito daquelas relações de produção. A raiz do mundo capitalista sempre esteve – e continua – na oposição capital versus trabalho. A exploração daí decorrente define a posição dos sujeitos em sua classe social.
Priorizar qualitativamente a relação de exploração à de opressão não significa afirmar que não existem opressões diferenciadas no seio da classe; não significa priorizar o sofrimento derivado da posição de classe em detrimento do sofrimento derivado das opressões. Significa apenas tomar a luta de classes como o fundamento central para a compreensão da realidade social sob o capitalismo e, por consequência, para uma estratégia verdadeiramente revolucionária que vise a derrubada da supremacia burguesa; estratégia em função da qual todas as demais lutas devem ser taticamente consideradas. A exploração engloba e abarca as formas de opressão. Por isso, essas duas dimensões podem (e devem) ser tratadas numa articulação dialética.
O problema da lógica identitária e pós-moderna está na solução (ou na falta de solução) que essa teoria irracionalista preconiza: “é impossível atacar o centro, mas atuar apenas nas margens do sistema”. Essa é a máxima pós-moderna. As lutas pelas causas oriundas das opressões são reais, concretas, verdadeiras. São, enfim, dimensões históricas da vida humana alienada no capitalismo. Portanto, a teoria que tem como objetivo a crítica da crítica regressiva pós-moderna, não deixa de tratar dos problemas reais ali indicados. Mas uma tal teoria precisa assumir o ponto de vista da totalidade e, sob a regência do capital (e para combatê-lo), a teoria que tem condições de realizá-lo não é outra senão o marxismo. Não é por acaso que as teorias pós-modernas recorrem a narrativas fragmentadas, realizadas por sujeitos descentrados, coletivos e plurais, que desconstroem e ressignificam (aleatoriamente) um outro conjunto de narrativas, em um círculo vicioso que jamais ultrapassa a linha de menor resistência do capital.
A pergunta que a esquerda tem que fazer hoje é: a que classe social interessa defender que não existe verdade objetiva e que é impossível uma compreensão racional do mundo, em sua totalidade? A que classe social interessa afirmar (ideologicamente) que não é possível atacar o centro do sistema, estabelecendo o limite de atuação dos sujeitos múltiplos apenas nas margens descentradas e aleatórias desse mesmo sistema? Com certeza, isso não interessa às classes trabalhadoras submetidas à brutal exploração do capitalismo.
Por isso, as teorias pós-modernas constituem uma das dimensões mais gritantes da contrarrevolução ideológica burguesa, cujo resultado político e prático redunda, no máximo, numa transgressão resignada. Esse aparente paradoxo – transgressão que se resigna – propõe uma atitude de suposta radicalidade sonora, mas repele por completo qualquer indicativo de ruptura revolucionária de classe. É nessa sutil armadilha na práxis cotidiana de nossas lutas, bem como na dimensão ideológica e concreta da contemporaneidade capitalista, que propomos o combate à supervalorização da mera transgressão dentro dos partidos de esquerda.
A Necessidade de um Partido Revolucionário
Os partidos burgueses não podem explicitar o seu caráter de classe sem com isso se colocarem abertamente contra os interesses da classe trabalhadora. Por isso, são obrigados a dissimular constantemente as suas reais intenções se apresentando como os representantes de toda a população. Que os partidos burgueses se camuflem sob a defesa abstrata dos interesses do “povo”, e assim, para o seu benefício, confundam os antagonismos de classe aos olhos dos trabalhadores, é um fato constitutivo do jogo de cena que sustenta a dominação burguesa sob a democracia liberal.
Mas que os partidos de esquerda hoje se rebaixem a fazer o mesmo, que se coloquem em defesa do “povo”, da “democracia”, e etc., que se abstenham de demarcar a cada momento a linha que cinde a sociedade em burgueses e proletários, de firmar a independência política e de classe dos trabalhadores diante dos partidos burgueses, de reiterar em cada discurso os objetivos históricos do proletariado enquanto classe revolucionária, tal fato é um indicativo iniludível da capitulação desses partidos à ordem dominante. Agindo dessa forma, os partidos de “esquerda”, com o PT à cabeça, cumprem hoje uma importante função para a conservação, legitimação, e defesa do atual sistema político burguês; eles são a oposição consentida da Nova República.
Infelizmente, não restando espaço para ilusão, o próprio PSOL tem sido progressivamente hegemonizado pelas políticas oportunistas de conciliação de classes e pela crença na possibilidade de efetuar alguma mudança em prol das classes populares pela via parlamentar e institucional. Por um lado, deu guarida às ideologias que retiram a classe operária do centro da luta política; por outro, submete cada vez mais a luta de classes aos limites da disputa partidário-eleitoral. Como resultado, se continuar a política da atual direção, o partido tende a se degenerar ao submergir o PSOL à hegemonia petista e ao mais rebaixado cretinismo parlamentar. Frente ao seu VII Congresso, o PSOL se encontra em uma encruzilhada; precisa definir que partido pretende ser. E, a julgar pela sua trajetória recente, por suas forças majoritárias, e pelo próprio formato do seu Congresso, a resposta poderá ser: mais um partido da ordem. O esforço da militância, diante disso, deve ser justamente em sentido contrário, colocando a necessidade de um partido independente da classe trabalhadora.
Por seu lado, o caráter político que inevitavelmente assume a luta de classes obriga o proletariado a se organizar como partido. O próprio processo de elevação da sua consciência de classe e, no limite, da sua consciência socialista, é o mesmo processo de organização da vanguarda da classe como partido revolucionário. Contudo, esse partido não existe hoje no Brasil. As grandes forças institucionalizadas do atual sistema partidário brasileiro, da direita à esquerda, obstaculizam ativamente qualquer possibilidade de a classe trabalhadora representar-se a si mesma de maneira independente na arena da luta política. Sendo assim, é condição necessária para a formação do partido revolucionário, antes de tudo, um enfrentamento contra as forças políticas que, sob a máscara da esquerda, refreiam ativamente essa organização.
É necessário, dessa forma, uma luta prolongada e implacável contra o progressismo, o social-liberalismo, o pós-modernismo, e qualquer outra ideologia ou tendência burguesa no seio dos partidos que detêm influência sobre a classe trabalhadora. Com oportunistas e liberais como seus representantes, a organização dos trabalhadores é impossível. Por isso, diante das velhas novidades requentadas pela ideologia burguesa, reafirmamos o marxismo como a única teoria verdadeiramente revolucionária, a única verdadeiramente capaz de mapear o capitalismo, de abrir ao proletariado o horizonte socialista, e de fornecer a arma da crítica necessária para a sua organização com vistas a esse fim.
Em um momento em que o espectro do comunismo volta a rondar a cena política, seja como pecha infamante proferida pelos políticos reacionários, seja como fetiche incrédulo por parte da esquerda liberal, faz-se necessário uma vez mais que os comunistas exponham abertamente, aos olhos de todos, as suas posições e seus objetivos. E, hoje, as tarefas que os comunistas colocam para si consistem em denunciar a cada passo o oportunismo da esquerda liberal, em desvelar o antagonismo inconciliável entre os trabalhadores e os capitalistas, e em tematizar constantemente a necessidade da classe trabalhadora, diante das inexoráveis lutas contra a exploração capitalista, se organizar enquanto partido revolucionário.
A atualidade histórica da revolução proletária – eis o padrão de medida para todas as tomadas de decisão sobre as nossas tarefas mais imediatas. Colocar a revolução na ordem do dia significa prepará-la desde hoje; significa que as tarefas do presente – a busca ativa de mobilização, organização e politização da classe trabalhadora – tornam-se um problema fundamental da revolução. As tendências e contradições que possibilitam a sua realização futura já se encontram incrustadas no momento presente; cabe a nós identificá-las, desenvolvê-las, torná-las palpáveis, fazê-las explodir. Tal como um refluxo da maré está apenas a preparar o próximo avanço, que atuemos decididamente desde já para tornar a nova ascensão da luta de classes o momento decisivo para a grande contraofensiva revolucionária do proletariado.
Camaradas, a velha toupeira da revolução não cessa em seu trabalho subterrâneo de estremecer o solo da ordem burguesa e causar pane em vários pontos do sistema. Não nos cabe aguardar o seu trabalho, mas acelerá-lo!