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Haiti: O peso da história e seus impasses atuais

O Haiti vive um período de contínua rebeldia popular cujo próprio início e motivações o jornalismo internacional não parece realmente almejar a elucidação. Quando não remete o tema a generalidades, coloca-o ao lado de exemplo permanente de catástrofes naturais que compõem o  noticiário, como o recente terremoto. Muitos lançam sobre o país o estigma da ‘’somalização’’, de ‘’Estado falido’’, clamando por mais intervenções militares estrangeiras como suposto antídoto contra a ‘’barbárie’’ haitiana, outros tratam-no como uma nação portadora de um indelével atavismo que remonta à revolução levada a cabo pelos escravos contra o colonialismo europeu e seu consequente ostracismo. O boicote a que foi submetida a república dos jacobinos negros foi de fato escandaloso. Para citar alguns poucos exemplos que ilustram a dimensão desse fato: os EUA, somente reconheceram o Haiti em 1862, ou seja, mais de meio século após seu surgimento. A França, por outro lado, nunca engoliu a existência do Haiti: foi somente em 2010, na esteira do terrível terremoto, que Sarkozy foi o primeiro presidente francês a ousar pisar naquele país. O Brasil, cujo latifúndio escravista historicamente tanto temeu o ‘’haitianismo”, somente em 1928 passou a manter relações diplomáticas com aquela república que ousou nascer a partir do fim da escravidão negra no Caribe. Desse modo, após a revolução, pode-se afirmar que o Haiti, quando não tentou sem sucesso continuar com o latifúndio exportador, se tornou essencialmente um país composto por pequenos proprietários rurais empobrecidos cuja produção se destinava à subsistência. No século XIX, apenas muito excepcionalmente exportou-se, por exemplo, café, mas tudo de modo muito insuficiente para a superação do pesado ostracismo e assédio das potências europeias e dos EUA. 

O peso histórico é de fato algo que guia os rumos do Haiti atual e isso pode ser verificado inclusive no próprio debate público naquele país. Trata-se de um país em que podemos assistir até a pastores evangélicos que falam de Toussaint Louverture e da revolução como ilustração motivacional para seu público. Os editoriais e colunas de opinião, mesmo aquelas provenientes dos jornais da burguesia haitiana, são repletos de referência a esse passado e um dos partidos à esquerda atualmente recorre ao nome e à memória de Jean Jacques Dessalines. Recorrer a esse passado quase exclusivamente, porém, não parece o mais adequado para compreensão das particularidades contemporâneas dessa sociedade, até mesmo por ser equivocado conceber esse país como destituído de uma continuidade histórica que também foi contrarrevolucionária, já que a primeira República negra da humanidade teve também uma classe proprietária que avidamente lutou, sobretudo a partir dos anos 1840, para suprimir o campesinato e a revolução em seu próprio país.

As ruas e a política do Haiti vêm sendo tomadas pelas massas desde 2017. Diante disso, o recente assassinato do presidente Jovenel Moïse é possivelmente uma tentativa de encerrar esse ciclo político insurrecional. Não sabemos, obviamente, todos os meandros que envolveram a operação de eliminação física do então presidente, mas é imperioso reconhecer: esse empresário corrupto do ramo bananeiro, herdeiro político do ex-presidente  Martelly (um neoduvalierista astro pop com ares de outsider que recebera bênçãos de Hillary Clinton), detestado pelo povo, eleito por irrisórios 500 mil votos em uma nação de mais de 10 milhões, não parecia ser mais do que a própria personificação da instabilidade política e da definitiva incapacidade da burguesia local de impor a mais mínima ordem no país quase desde o primeiro ano em que seu próprio mandato presidencial começou. Moïse vinha sendo percebido apenas como um presidente de fato, a ser removido. Seu desaparecimento, por essa razão, pode ter sido visto inclusive por setores diretamente ligados ao imperialismo como algo desejável e o cosmopolitismo da composição do time de mercenários que o mataram demonstra-o. Tal fato, no entanto, não só foi conveniente aos interesses da dominação burguesa no Haiti como também foi levado a cabo conforme as mais inovadoras e eficientes últimas tendências do ramo dos conflitos armados: a da privatização das guerras.

Moïse, independentemente de quem afinal tenha sido o verdadeiro mentor de sua eliminação física, foi morto não por dispendiosas tropas regulares de um país estrangeiro, tampouco o foi por uma onerosa intervenção humanitária capitaneada por algum governo de esquerda da América Latina, a exemplo da Minustah, cujos sólidos legados agora temos oportunidade de apreciar através dos ilustríssimos generais que agora integram a cúpula do governo Bolsonaro. Foi tudo bem distinto disso: o então abominado mandatário haitiano, que já ensaiava teatrais falas anti-oligárquicas, foi eliminado por mercenários estrangeiros ex-militares a soldo de uma empresa privada baseada na Flórida, com mais que provável conivência da própria segurança presidencial. Tudo muito cosmopolita, com braços na Colômbia, na direita Venezuelana e em perfeita consonância com a última palavra em eficiência, inovação e modernidade no ramo dos conflitos armados, já que esse tipo de empreendimento – verdadeira guerra privada – permite a caça a alvos determinados e abatimento deles sem que se aplique a legislação internacional que proscreva a guerra ou que lhe imponha severos limites aos meios. 

Tivemos nesse episódio, ademais, na verdade, um espraiamento dos resultados da narco democracia forjada pela burguesia na Colômbia: repleta de ex-combatentes desempregados que, após combaterem a eterna guerrilha no próprio país, agora tentam a sorte em aventuras no exterior.

RAÍZES DO PERÍODO INSURRECIONAL NO HAITI

A incipiente funcionalidade da república haitiana na última década, em larga medida, era sustentada pela mão dura da Minustah e também pelos subsídios venezuelanos via Petrocaribe. Esse esboço degenerado de república sob tutela estrangeira, porém, começou a desabar após a descoberta de escândalos de corrupção e desvio de recursos do referido programa, sustentado pela Venezuela, que lhes concedia combustíveis a preços muito vantajosos. Somou-se isso a aumento fulminante no preço dos combustíveis implementado em razão de negociações com o FMI, que buscavam tirar o país caribenho da órbita de influência diplomática bolivariana. Esse aumento foi implementado, curiosamente, durante o jogo da Copa do Mundo  de 2018 entre Brasil e Bélgica, e foi o estopim que colocou as massas haitianas definitivamente nas ruas. 

O presidente Moïse apostava que uma vitória da seleção brasileira, de ampla predileção dos haitianos, poderia encher de alegria o ambiente e ofuscar a má recepção da medida, mas o que ocorreu é que com a vitória belga a população tomou a região metropolitana de Porto Príncipe nos cinco minutos seguintes, queimando pneus e bloqueando vias, enchendo de temores os habitantes do abastado subúrbio de Pétion-Ville, onde estão concentrados os automóveis particulares. 

Como no capitalismo dependente haitiano o automóvel assume feições de bem suntuário ainda mais contundentes que no Brasil ( há cerca de somente 3 automóveis por mil habitantes, enquanto no Brasil há mais de 300 por mil), interromper vias e  queimar pneus é,  naquele país, em si, algo distinto do que um brasileiro pode imaginar. Tal ato, diferentemente, reveste-se de conteúdo marcantemente  anti-burguês.  Tratou-se, desse modo, de um primeiro ato de orgânica ira popular. O que se verificou na esteira disso, nos anos seguintes, foi uma verdadeira insurreição popular com conteúdo flagrantemente anti burguês, que evoluiu, por exemplo, para queimas de automóveis de luxo, ataques a estabelecimentos comerciais e uma implacável demanda pela renúncia imediata de Moïse. Muitos populares falaram desde o primeiro momento até que o que almejavam era a revolução!

Tais fatos, porém, não foram mais do que o estopim de um verdadeiro barril de pólvora. Essa mudança de preços levada a cabo durante a Copa consistiu no aumento de cerca de 38% na gasolina, 47% no diesel e 51% na querosene ( usada pela imensa massa de haitianos que não dispõe de acesso à rede elétrica) e foi medida que gerava implicações para a própria sobrevivência do povo haitiano, em sua acepção mais rigorosa. Não havia mais excedentes que pudessem albergar grandes parcelas daquele povo em relativa indiferença, pois o desemprego e o sub-ocupação atingem 60% da população e o setor informal constitui 80% do emprego total no país. Trata-se, ademais, de um país em que mais de 40% de sua população vive ainda diretamente atrelada à agricultura de subsistência, conformando um campesinato em rápida decomposição, fato que infla sobretudo Porto Príncipe ou a sangria populacional rumo à República Dominicana, EUA, Chile ou Brasil.  

No geral, ademais do advento de uma juventude urbanizada desempregada, mas instruída, há uma juventude arruinada proveniente do campo haitiano. Esta última tende a tentar vender suas terras para obter uma motocicleta e assim tentar a sorte na capital, sendo motoristas, entrando em algum outro setor de serviços super precarizado e informal, ou até mesmo entrando para a criminalidade ou usando todos seus recursos para ir embora. Nesse contexto, portanto, um aumento no preço de combustíveis assume aspectos inimaginavelmente mais explosivos ainda do que o seriam em outros países subdesenvolvidos, pois, ainda mais contundentemente, a própria existência dos haitianos passou a estar em jogo.  Trata-se de um país em rápida urbanização, ainda muito rural ( 48%) e que jamais conheceu sequer um processo de industrialização expressivo no pós-guerra por intermédio da chegada de capital estrangeiro, como ocorreu na imensa maioria da América Latina.

 O Haiti, portanto, é o mais eloquente retrato do subdesenvolvimento que se pode ter nas Américas e até um antecipador de tendências que poderão surgir em outros países da região, porquanto totalmente alheio a qualquer resquício de passado nacional-desenvolvimentista a ser retomado e acalentado. Esse país está de fato na vanguarda do subdesenvolvimento: a pauta da balança comercial do país, por exemplo, sequer permite lamentações ilusórias em relação a uma reprimarização, como no Brasil. Ao contrário: o Haiti só não dispõe de nenhum período industrial áureo a ser relembrado como também é possível notar que temos no setor exportador do Haiti um país cujas exportações são contundentemente industrializadas. 

O país caribenho registrou uma balança comercial cujas exportações foram de apenas U$$ 1,33 bilhão no ano 2019, sendo essas constituídas em mais de 80% por têxteis direcionados em 81% aos EUA. E essa produção envolve diretamente somente cerca de 60 mil trabalhadores têxteis.  Por outro lado, o país tem uma pauta de importações diversificadíssima com cerca do dobro do valor das exportações, além de depender muito das importações de derivados do petróleo, é um país agrarizado que importa muito arroz .  As remessas de imigrantes no exterior, que são quase 700 mil haitianos, ademais, são a maior fonte de divisas do país. Esses recursos são os únicos que superam largamente a indústria essencialmente têxtil e a agricultura majoritariamente de subsistência de todo o país.

Trata-se, em síntese, de um país cuja conexão com o capitalismo mundial, em termos de mercadorias, se dá basicamente com as empresas transnacionais estrangeiras, que, além de não pagar impostos por localizarem-se em zonas francas, empregam os trabalhadores haitianos a preços que causariam um ataque de inveja no capitalista que tem que remunerar onerosos trabalhadores chineses em pleno 2021.  A remuneração extremamente rebaixada da mão de obra haitiana é hoje, desse modo, vista como um dos pilares da prosperidade dos escombros daquela república burguesa. 

Essa prosperidade até chegou a estar ameaçada por apreciações da moeda haitiana em setembro de 2020. Jornais haitianos, franceses e estadunidenses, há menos de um ano, independentemente da rebelião popular em curso, muito discutiam com muita preocupação sobre os terríveis prognósticos de uma fuga massiva de maquiladoras. Felizmente para os capitalistas, porém, a moeda nacional hoje se vê fortemente depreciada, mantém intacto o sistema da florescente e promissora constelação de maquiladoras têxteis, a despeito de efeitos colaterais como a pauperização e consequente aprofundamento da ira popular em curso. Seja como for, a indústria têxtil superou essa Nêmesis e o temível prognóstico de que a remuneração diária do trabalhador têxtil haitiano pudesse inflar-se de 4 para até astronômicos 8 dólares não chegou a concretizar-se.

PÉTION-VILLE, PÉTION X DESSALINES E O DESSALINISMO

Mesmo diante dessas condições sociais verdadeiramente aviltantes, os haitianos desde o início da revolta, apesar de suas condições e até mesmo a despeito da fraquíssima estrutura sindical e partidária, foram capazes de não só levar adiante uma insurreição massiva com milhões nas ruas como também foram capazes de impor verdadeiras greves gerais com envolvimento de trabalhadores têxteis, motoristas, estudantes e muitos outros setores, deixando o país parado por dias e  demandando a renúncia de Moïse. Não houve vacilações ou desânimo das massas. Durante o processo, é claro, lideranças ganharam maior expressividade. Dentre elas, é interessante observar o caso do partido Plataforma Pitit Dessalines, liderado também por Jean Charles Moïse (sem parentesco com o presidente assassinado), que foi o terceiro mais votado na última eleição presidencial. Essa figura ganhou notoriedade maior participando de passeatas vestindo-se  como o histórico libertador nacional Jean Jacques Dessalines e exercendo liderança nos chamados à greve geral.

Jean-Jacques Dessalines, o reverenciado patriarca da nação, é claro, é cultuado tanto por políticos oportunistas para auto-legitimação, como também para canalizar o descontentamento popular.  O ditador François Duvalier, que tão bem manejava a identidade negra em seu favor, dizia-se herdeiro de Dessalines;  Michel Martelly, outsider astro pop, uma espécie de Trump caribenho, eleito penúltimo presidente por um partido conservador agrarista ad hoc, também se apoiava na memória dessa patriarca nacional, inaugurando estátuas em sua homenagem. 

Sua imagem, porém, é também indutora de rebeldia e é frequentemente evocada por haitianos à esquerda ou amplamente insatisfeitos com o que denominam de domínio das oligarquias. Não é por acaso, por conseguinte, que o Pitit Dessalines, com referência direta a esse personagem histórico, tenha ganho esse respaldo. Seu líder, que se proclama um socialista-dessaliniano, muito embora apresente em suas formulações até que Fidel Castro seria sua segunda maior inspiração política, é algo bastante genérico, que não supera muito um vago nacionalismo de esquerda.

 É, no entanto, bastante sugestivo notar que uma das localidades que despertam maior ira desses setores populares que tanto evocam o nome do pai fundador da nação seja Pétion-Ville. Alexander Pétion, o personagem que inspirou o nome dessa localidade, que é o mais rico, afastado e montanhoso subúrbio de Porto Príncipe, foi o primeiro presidente da república do Haiti. Envolvido no assassinato de Dessalines e ligado à emergência de uma classe de mulatos pequenos proprietários rurais que tiveram relativa prosperidade como exportadores de café sob influência geopolítica do Império Britânico, Pétion cai como uma luva para Pétion-Ville. Era um mestiço atrelado a uma francofonia bem educada, mantenedora da ordem e dos interesses dos proprietários mestiços, e, por isso, em flagrante antagonismo com a negritude popular que fala créole, a qual representa Dessalines.

AS OLIGARQUIAS E O LUMPENPROLETARIADO

No Haiti, o panorama da composição de classes é absurdamente mais extremo que na América Latina em geral. Há largo reconhecimento no debate público de que o que denominam de classe média naquele país é, em termos da América do Sul, rigorosamente classe trabalhadora.  Diz-se que os estratos médios foram dilacerados e uma grande aspiração, tanto de jornais burgueses quando de meios ‘’de esquerda’’, é que o país tenha efetivamente um dia uma classe média robusta e não uma massa de pauperizados dominados por uma ínfima minoria de ricaços cercados por muros de condomínios em Pétion-Ville.

O que tem emergido desse panorama geral circundado pela insurreição popular, com ainda mais força, é a milícia. Na sociedade haitiana, esse fenômeno tem velhas raízes nos paramilitares Tonton Macoutes da ditadura de François Duvalier, mas provavelmente está encontrando seu ápice agora, corolário de uma urbanização crescente em número e em pauperização durante uma grave crise do capitalismo mundial. Esse contexto permitiu um engrossamento do lumpenproletariado de tal ordem que milícias agora começam a esboçar até mesmo discursos que indicam supostas pretensões de autonomia política. Isto é, vemos partindo de lideranças do lumpenproletariado uma faceta política supostamente independente e com feições de rebeldia.

Jimmy Cherizier, conhecido por Barbecue, um ex-policial que trabalhava como capanga para oligarcas do país, é a mais expressiva personificação desse fenômeno. Barbecue conseguiu unir essas milícias, que dominariam cerca de metade da capital em uma federação de nove delas, agora conhecida por G9. É particularmente chamativo o fato de que esse personagem já não atua nas sombras como um criminoso comum. Pelo contrário: Cherizier tem recebido até jornalistas estrangeiros e falado diante de uma bandeira haitiana, à luz do dia, como um orgânico líder popular e miliciano, em meio a seus apoiadores armados até os dentes. Nas falas de Barbecue, além lágrimas emocionadas, culpabilização das oligarquias pelo assassinato de Jovenel Moïse e clamores por uma revolução disposta a armar até crianças, há também ataques à poderosa oligarquia de origem sírio-libanesa que domina frações do capitalismo haitiano. Essas falas, no entanto, obviamente, não insinuam qualquer afronta ao capitalismo: ao contrário, há nos discursos de Jimmy Cherizier um apelo por uma presença maior de negros como donos de hotéis e de concessionárias de carro, um apelo pela conformação de mais capitalistas crespos, em flagrante racialismo de oposição aos descendentes de sírio-libaneses.

Há, porém, muitos relatos de que essas milícias têm viscerais ligações com o governo de turno. E que sempre foram usadas para governos de turno. Jovenel Moïse, por exemplo, empregava-as como instrumento para coibir a insurreição popular em curso e oligarcas, inclusive egressos dessa minoria sírio-libanesa, sempre se valeram desses bandos criminosos. Cherizier, até o momento, somente traz diferença a esse cenário por ser o primeiro capaz de unir uma federação de milícias, mostrar ser uma liderança ineditamente conciliadora e conferir ao banditismo um discurso político com alguma coerência que perpasse a mera prática de crimes comuns.

O discurso rebelde do líder da federação de milícias que tomou metade de Porto Príncipe, entretanto, não é nenhuma novidade. Antes disso, trata-se do reavivamento de velhas tradições políticas haitianas que são profundamente reacionárias. O recurso ao discurso da negritude contraposto às elites mestiças ou aos sírio-libaneses, por exemplo, foi mobilizado por diferentes presidentes haitianos já a partir do começo do século XX para coibir e proibir a permanência e existência de migrantes dessa procedência. A questão negra e até um nacionalismo bravateiro anti-ocidental, com entusiasmo pan-africano, ademais, já foi até sustentáculo da ditadura de François Duvalier. 

Não se pode ignorar, no entanto, o lastro de realidade que sustenta o discurso de Cherizier. Réginald Boulos, um dos homens mais ricos de todo o Haiti, frequentemente apontado inclusive como possível mentor do assassinato do presidente Moïse, por exemplo, é possivelmente o mais emblemático alvo contemporâneo desses discursos. Haitiano de origem libanesa, Boulos, além de ser o ex-presidente da Câmara de Comércio e Indústria do Haiti, é filho do ex-ministro da saúde em exercício durante a velha ditadura pan-africanista de Duvalier. Réginald Boulos enriqueceu-se  sobretudo através de contratos com o governo no setor elétrico. Jovenel Moïse teria coibido tais contratos, na esteira de um distanciamento político entre ambos. Esse fato, na avaliação de muitos no Haiti, colocaria o magnata  permanentemente entre os principais suspeitos de ordenar o assassinato do presidente.

É preciso lembrar, além disso, que Boulos tem reconhecidas ligações com as milícias e que as utilizou durante o golpe contra Jean Bertrand Aristide. É conhecido, em síntese, por fornecer armas e munição às milícias há décadas. E Cherizier, que alguns no Haiti veem como algum tipo de Robin Hood, já esteve sob suas ordens em outros tempos.

Publicações com uma sensibilidade à esquerda têm enfatizado que haveria uma insurreição do lumpenproletariado que refletiria a imaturidade política das lutas no Haiti. Parece, entretanto, difícil que o lumpenproletariado, como classe sem horizonte próprio, em país que é inclusive expressiva rota do tráfico de drogas em direção aos EUA, possa atuar consequentemente em uma direção antagônica à burguesia. Independentemente das reais intenções de Cherizier, que tem buscado se apresentar como um verdadeiro caso de banditismo social, o fato é que o assassinato de Moïse em nada contribuiu para a luta das massas haitianas e essas pouco se comoveram com seu asssasinato. As massas haitianas, ainda em Cap Haïtien, mostraram-se enfurecidas exatamente nos arredores de onde altas autoridades nacionais e estrangeiras prestavam suas condolências . Esse episódio pode vir a funcionar como verdadeiro pretexto para uma atuação mais concertada e harmônica com vistas a melhor controlar inclusive essa aparente autonomia esboçada pelo banditismo plebeu em Porto Príncipe.

Há fortes indícios de que o assassinato de Moïse tenha tido cumplicidade de sua própria guarda presidencial e até suspeitas de que a facção liderada por Martelly tenha planejado o atentado de modo a dissolver o alvo da oposição e perpetuar-se no poder. O certo, porém, independentemente de especulações, é que a morte de Moïse nenhum ganho representou para as massas haitianas que, tão organizadas, foram capazes de impor dias de greve geral com fito de depor o antigo presidente. Um povo capaz, como poucos, de movimentar-se por uma greve geral de adesão nacional que esvazia as principais artérias das cidades do país, é tudo, menos ingovernável, irracional e caótico. Não é uma Somália caribenha, como insistem alguns. Expressiva fração do povo haitiano em diáspora inclusive ama seu país, editam jornais com tendência francamente progressista e interessa-se, mesmo no exterior, pelos rumos de seu país. A turbulência política haitiana é, antes de tudo, um sintoma da crise mundial em um país dos elos mais debilitados do capitalismo. Por ora, a promessa de uma nova constituinte para substituir a Constituição de 1987, como no Chile ou até no Peru, suscita alguma esperança entre os haitianos e o apelo à filantropia para mitigar os danos do recente terremoto podem, de algum modo, contribuir para a permanência do velho esquema da ‘’república de ONGs’’ que o Haiti se tornou.

Ariel Henry tomou posse. Saudado pelos Estados Unidos e pela OEA, o jornal Le Nouvelliste, o mais antigo e maior do país, insuspeito de ser radical, trouxe entre suas manchetes, nos primeiros dias de governo de Ariel, que o governo não tem apoio da oposição e nem de organizações da sociedade civil. O personagem, ademais, é  largamente visto como ligado ao golpe de 2004 contra Aristide, mas o recurso às promessas do constitucionalismo, combinado ao assassinato de Moïse e à sombra da possibilidade de uma intervenção estrangeira podem ser ainda mais uma salvação improvisada, para que a classe dominante no Haiti, sócia do imperialismo, consiga manter tudo exatamente como está, mesmo sem subsídios aos combustíveis, com inflação galopante, desvalorização cambial aviltante e casos escandalosos de corrupção no governo.

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