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A luta contra a EBSERH: o caso da UFRJ

No último dia 2 de dezembro, a sessão do Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ aprovou a abertura de negociações com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) para gestão do seu Complexo Hospitalar, que é responsável por nove unidades[1] de atendimento ao público, sendo o maior deles o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, localizado na Cidade Universitária. Na ocasião, dezenas de docentes, técnicos-administrativos e estudantes organizados pelo “Movimento Barrar a EBSERH na UFRJ”, assim como já haviam feito no dia 23 de novembro, voltaram a se reunir durante a sessão do Consuni para protestar contra essa contratualização do Complexo Hospitalar. O que está em jogo nesta luta de setores da UFRJ contra a EBSERH, e quais foram os fatores determinantes para a decisão do Consuni, é o que presente texto pretende abordar.

A reforma do Estado e o modelo EBSERH

O chamado processo de reestruturação produtiva desencadeado pela crise capitalista global dos anos 1970 demandou, no âmbito da superestrutura política e jurídica, um progressivo desmantelamento do caráter social do Estado, processo cujo desdobramento se estende até os dias de hoje. Nos países centrais a burguesia imperialista, em uma frente, por meio dos seus políticos, ideólogos, e monopólios de imprensa, passa a pressionar fortemente por reformas que tornassem o Estado “menos oneroso e mais flexível”, um Estado “inovador”, “empreendedor”, que adotasse, enfim, um modelo empresarial de administração pública. Em outra frente, os países imperialistas (sobretudo os EUA) passam a se servir cada vez mais de suas “agências multilaterais” a fim de conformar as políticas dos países de capitalismo dependente e periférico ao seu receituário liberalizante. Neste sentido, a crise da dívida externa iniciada em 1980 nos países da América Latina criou as condições para que para o Banco Mundial e o FMI impusessem a estes países o ajuste liberal do Estado, mas garantindo ao mesmo tempo a sua condição subalterna na divisão internacional do trabalho. Este processo vem atingir o Brasil com mais intensidade nos anos 1990.

O contexto histórico de criação da EBSERH remete precisamente à implementação deste leque de reformas e legislações que incidiam sobre o aparelho de Estado na década de 1990 (sob mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso), a fim de que o Estado fosse operado por uma perspectiva gerencial, tal como se fazia na esfera privada, de modo que o principal compromisso das instituições se desse com o alcance de metas de resultados, medido em valor como critério de bom desempenho. Para tanto, segundo os defensores dessa reforma, como o seu ideólogo, agora queridinho de quase todos os espectros políticos, Luiz Carlos Bresser Pereira, seria necessário romper uma visão dicotômica entre o público e o privado, abrindo espaços para que instituições da sociedade civil (difundidas como um “terceiro setor”) pudessem prestar os serviços públicos que eram realizados de forma ineficaz pelo Estado.

 A aprovação de legislações como a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000) incidiu diretamente sobre as despesas que o Poder Executivo poderia contrair com remuneração de servidores públicos, de maneira a privilegiar as despesas com o serviço da dívida e seus juros. Dessa forma, a contratação da força de trabalho passou a ser cada vez mais frequente por meio de terceirização junto a empresas privadas, cooperativas e outras formas de subcontratação que não vinculassem diretamente esses profissionais ao quadro de servidores públicos com estabilidade pelo Regime Jurídico Único (no caso das instituições federais).

Com os Hospitais Universitários Federais não foi diferente em relação ao quadro de pessoal, somado ao subfinanciamento pelo qual passavam, o que impediam essas instituições de funcionar adequadamente. De modo a supostamente solucionar o que era chamado de “crise dos HUFs”, já no governo Lula (2003-2010), o então titular da pasta da Educação, Fernando Haddad, articulou junto a profissionais e gestores da saúde uma proposição de reorganização da prestação de serviços dos HUFs. Nesse contexto, somou-se a essa equipe de articulação, o Banco Mundial, que já tinha elaborado um diagnóstico dos HUFs, em que apontavam o alto custo dos procedimentos realizados por estes, bem como uma alta despesa com a força de trabalho contratada sob regime de estabilidade, o que rebateria na manutenção dos equipamentos, que cada vez mais se deteriorariam.

Dessa forma, articulando-se Ministério da Educação e um empréstimo do Banco Mundial na ordem dos R$756 milhões, foi lançado em 2010, o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF), seguido em 2011, da criação da EBSERH. Para ter acesso a esse montante de recursos, que seria dividido entre os HUFs, a condicionalidade seria a adoção de um novo modelo de gestão. Esse novo modelo pela EBSERH, uma empresa pública de direito privado, teria como finalidade a prestação de serviços gratuitos de assistência de saúde e que, embora esteja inserida no âmbito do Serviço Único de Saúde (SUS), também poderia atender clientes de planos de saúde privado, o que passou a ser classificado como um atendimento de “porta dupla de entrada”. A forma de ingresso no quadro de pessoal se dá por regime CLT e não por servidores públicos estatutários, embora estes possam estar cedidos à EBSERH às custas dos cofres públicos.

A adesão à gestão dos HUs pela EBSERH se dá por meio de uma declaração de interesse para abertura de negociações por parte da respectiva universidade federal, tal como foi aprovado de ocorrer no referido Consuni da UFRJ. Após a manifestação do interesse, é celebrado um contrato de gestão por ambas as partes, no qual são estabelecidas metas de desempenho quantitativo de atendimentos por determinados prazos de execução, a partir de um diagnóstico situacional do HU realizado pela EBSERH. Essa proposição de metas, bem como a composição de conselhos gestores do HU, passa a estar menos sob controle social da universidade, pois se trata de um modelo hierárquico empresarial em que uma iminente perda de autonomia da universidade utilizar os seus equipamentos de saúde para as funções de ensino, pesquisa e extensão, pois a natureza da gestão desses equipamentos de saúde passam a estar regidos por uma lógica produtivista, em que procedimentos de custos mais elevados poderiam inclusive ser deixados de lado.

Ainda sobre o próprio funcionamento e consequências advindas do modelo EBSERH, cabe ressaltar, não menos importante, os interesses pessoais que uma camada da burocracia estatal/acadêmica pode ter, na medida em que o corpo dirigente da EBSERH tem a possibilidade de acumular polpudas remunerações, tal como os atuais presidente e vice da EBSERH, dois militares de alta patente do Exército, que somam aos salários na reserva mais R$ 30 mil para estar nesse cargo. Também é passível de questionamento que, a partir da implementação da gestão pela EBSERH, frequentemente as relações de trabalho se deterioraram por conta de conflitos pela existência de carga horária diferenciada entre trabalhadores regidos pelo RJU, pela CLT e terceirizados, implicando também diferenças salariais e pagamento de insalubridade maior aos celetistas, o que fragmenta e fragiliza a possibilidade de aglutinação e compreensão de classe trabalhadora unificada em torno de objetivos em comum.

A flexibilização do regime de trabalho, que coloca em concorrência os servidores concursados com funcionários contratados, desestabilizando o cargo público e rebaixando as condições gerais de trabalho; a alteração do financiamento dos HUs, aos quais passa a ser permitido ceder bens e direitos (públicos) como forma de captação financeira; a transferência das responsabilidades, que concede à EBSERH a coordenação e a avaliação da gestão dos hospitais universitários, afastando a universidade dos processos decisórios do seu Complexo Hospitalar; e a subtração da funções acadêmicas e educativas dos HUs, que deixará de funcionar como ponto de convergência pedagógica dos pilares universitários (ensino, pesquisa e extensão); entre outras, são mudanças que implicam em desastrosas consequências já percebidas pelos HUs que se encontram sob a gestão da EBSERH, afetando diretamente na formação profissional, no investimento em infraestrutura, e na qualidade da assistência hospitalar. Dez anos após a sua criação, no lugar da tão prometida recomposição do quadro de recursos humanos, o que a EBSERH conseguiu entregar foi a superexploração dos trabalhadores, os conflitos empregatícios, a dissociação dos HUs com a universidade, e o enfraquecimento da autonomia universitária.

Desde que foi criada em 2011, a adesão dos HUs à EBSERH não foi realizada sem resistência das comunidades acadêmicas, a despeito das quais, no entanto, foi sendo aprovada de forma avassaladora, e não raro antidemocrática, pelos Conselhos Universitários. Em 2013, após intensa mobilização da comunidade acadêmica, o Conselho Universitário da UFRJ (Consuni) conseguiu barrar a inserção da EBSERH no interior do Complexo Hospitalar da universidade. Isto, todavia, apenas para ver a mesma pauta retornar oito anos depois. Até há poucos dias, a UFRJ era uma das únicas universidades federais a escapar do controle da EBSERH; mas o último Consuni derrotou essa resistência.

É preciso ter clareza de que o EBSERH, juntamente com outras parcerias público-privadas que penetram nas IFES, e com o receituário do empreendedorismo e da inovação que forma hoje a cartilha das reitorias, não são responsabilidade exclusiva deste ou daquele governo, mas se constituem como parte de um processo contínuo e totalizante de reforma liberal do Estado. Razão pela qual, embora penetre nas IFES, trata-se de um processo que extrapola o âmbito interno de cada instituição, e que, por isso, dificilmente pode ser combatido em uma luta circunscrita a cada comunidade acadêmica. Razão pela qual, diga-se também, a resistência provisória da UFRJ teria de ser eventualmente derrotada, sobretudo enquanto não se articulasse com os trabalhadores e estudantes das demais universidades contra a agenda liberal que avança sobre o ensino superior público. Razão pela qual, em suma, não compartilhamos da esperança de que um novo governo Lula possa, ou queira, alterar o curso dessa agenda, como não pôde ou quis fazê-lo nos seus governos anteriores.

De toda forma, o obstáculo mais concreto ao desafio de articulação do estudantes e trabalhadores das diferentes universidades que sofrem os efeitos da agenda burguesa sobre a educação é a própria fragmentação momentânea das lutas populares, bem como o atual rebaixamento das organizações de esquerda, que hoje resulta, no interior das comunidades acadêmicas, na hegemonia dos setores em favor da “modernização” das universidades, e em um relativo isolamento das parcelas que compreendem e confrontam o caráter liberal de tal projeto.

A correlação de forças políticas dentro da UFRJ

A comunidade da UFRJ é composta por um número de aproximadamente 83 mil pessoas, das quais 70 mil são estudantes, e 13 mil são trabalhadores da universidade. Ou seja, por volta de 84% da comunidade universitária é composta por estudantes. Fornecemos estes dados da UFRJ[2] para ilustrar o quão desproporcional é a representação por categoria no colegiado máximo das UFs brasileiras. Segundo a LDB/96, Art.56, Parágrafo Único, “os docentes ocuparão setenta por cento dos assentos em cada órgão colegiado”[3], incluindo, por óbvio, o órgão máximo, o Conselho Universitário. Ora, na UFRJ, dos 13 mil trabalhadores, por volta de 4.200 são docentes, isto é, 5% da totalidade do corpo acadêmico. Não obstante, esses 5% ocupam 70% das cadeiras do Consuni! Os estudantes dividem com os técnicos-administrativos os 30% restantes, o que, no caso do Consuni, significa 5 cadeiras para cada categoria. De modo que, na UFRJ, os estudantes (84% do total) tem a sua representação comprimida em apenas 15% dos votos no Conselho Universitário.

Em suma, precisamente a categoria mais historicamente conservadora da comunidade acadêmica, a dos docentes – malgrado as suas honrosas exceções –, retém sozinha a capacidade de decidir os rumos das Universidades Federais. Sabemos que essa desproporção representativa instituída pela LDB tampouco é acidental. Essa peça legislativa foi elaborada na gestão FHC confiando plenamente na tendência histórica do docente universitário brasileiro de se encastelar em seu feudo particular, de lutar para conservá-lo, e nele fazer a sua carreira; de se alienar do restante da classe trabalhadora e se posicionar sempre em favor da manutenção da ordem que assegura seu status social e as suas condições materiais. Que a “gestão democrática” do ensino superior público tenha sido instituída de tal forma a refletir a democracia burguesa, isso se evidencia precisamente pela lei que garante nas instâncias deliberativas universitárias sempre a maioria dos votos justamente para a categoria minoritária (5% na UFRJ!), que é também aquela cuja renda destoa consideravelmente do restante da comunidade acadêmica (e da média da classe trabalhadora em geral).

Dessa situação se infere, naturalmente, que, tal como são constituídos por lei, os Conselhos Universitários das IFES são incapazes de representar de maneira justa os interesses das respectivas comunidades acadêmicas em sua totalidade. Neste contexto, se é verdade que a categoria dos docentes tende a representar a ala mais conservadora dos Conselhos relativamente às outras categorias, a proeminência da sua posição nos processos decisórios – vale reiterar, uma posição majoritária por lei –, confere uma maior importância às contradições internas dessa categoria. Ao se abstrair do restante da comunidade universitária, o próprio corpo docente reflete, ainda que de forma refratária e moderada, a totalidade do espectro político. Logo, haverá no seu interior posições oscilantes entre situação e oposição, a depender da pauta ou do “bloco no poder” da Reitoria, mas também haverá uma parcela com tomadas de posição consistentemente à esquerda, que tendem a se unir às mobilizações dos setores populares da comunidade universitária.

E aqui incide a extrema importância da atuação do sindicato dos docentes universitários. Um sindicato que mantenha uma postura combativa no plano interno, solidária com respeito aos demais setores da comunidade universitária, e, no plano político geral, se alinhe minimamente aos interesses da maioria da classe trabalhadora brasileira, se revela tão determinante quanto é desproporcional o poder de influência dos docentes sobre os rumos das UFs. Já um sindicato de docentes universitários desconectado das lutas do restante dos trabalhadores e estudantes, que mantenha relações mais sólidas com a Reitoria do que com as suas bases, que reforce e proteja a vantagem institucional dos docentes com relação ao restante da comunidade acadêmica, possui a capacidade de pôr rígidos freios não só às contestações da base docente, como também às lutas dos estudantes e técnicos-administrativos. Em resumo, diante da atual configuração do Conselho Universitário, apenas a ação articulada das entidades representativas sindicais e estudantis, e a mobilização intensa de suas bases, tem demonstrado historicamente a capacidade de influir nas decisões relativas a cada UF.

Basta comparar a luta da comunidade da UFRJ conta o EBSERH realizada em 2013, com aquela realizada neste ano. Em 2013, diante da gestão do reitor Carlos Levi, a luta contra a adesão à EBSERH mobilizou todas as entidades representativas da comunidade da UFRJ: dos docentes (AdUFRJ), dos técnicos-administrativos (Sintufrj), dos estudantes de graduação (DCE Mario Prata) e pós-graduação (APG-UFRJ). Mais de mil pessoas compareceram à sessão do Consuni que votaria a adesão à EBERH, lotando o auditório do Centro de Tecnologia e entoando palavras de ordem contra a proposta em pauta. A pressão da comunidade mobilizada fez o reitor desistir de levar o tema à votação. Quais foram então as diferenças essenciais que determinaram que a luta de 2013 fosse vitoriosa, e que a de 2021 tenha resultado em derrota?

Em primeiro lugar, devemos levar em conta a diferença de conjuntura histórica. A crise capitalista que atingiria o primeiro governo Dilma no final de 2011 daria início, a partir de 2012, a um longo e intenso ciclo de mobilizações grevistas e lutas políticas de massas. Em 2013 tivemos uma explosão de manifestações políticas e de lutas econômicas, onde parte considerável das forças progressistas e de esquerda – que, já desde o primeiro mandato de Lula, se posicionavam como oposição aos governos do PT e tentavam se apresentar aos trabalhadores como alternativa radical à hegemonia petista – se esforçavam por ocupar a vanguarda desses movimentos. Assim, a pauta da adesão das UFs ao EBSERH – na qual ainda estava fresca a impressão digital do PT –, encontrou na UFRJ, na esteira das lutas de massas de 2013, forte oposição.

Avançando oito anos na história, o que encontramos é uma conjuntura inteiramente distinta, onde a ascensão da extrema-direita teve como um dos principais efeitos sobre a esquerda a reaglutinação de quase todo este campo político mais uma vez sob a liderança do PT, agora em oposição ao governo. Organizações de esquerda que antes defendiam a necessidade de uma alternativa socialista rebaixaram suas bandeiras diante da extrema-direita e elegeram Lula como a única esperança de derrotar Bolsonaro. Na conjuntura atual, portanto, em que desde 2018 se percebe um aprofundamento da crise econômica e um refluxo nas mobilizações dos trabalhadores – conjuntura que viria a ser agravada pela pandemia –, e em que as forças de esquerda se acanham diante do atual cenário e se resignam cada vez mais ao social-liberalismo, caminhando de forma hesitante porém progressiva para o centro do espectro político e ideológico, a luta na UFRJ contra a EBSERH necessariamente enfrentaria novos obstáculos, dentre os quais se destaca o alinhamento de importantes entidades representativas da comunidade universitária ao social-liberalismo do PT.

Essa conjuntura se particulariza na UFRJ pela cooptação da Reitoria, da AdUFRJ e da APG à linha política social-liberal. Seria incorreto, contudo, dizer que esta cooptação se manifesta necessariamente por uma filiação orgânica de todos os membros destas entidades ao PT, embora de fato haja tais membros. Trata-se antes de uma submissão tácita e oportunista, não tanto aos símbolos, cores e personagens petistas, mas à essência de sua política educacional, que, para todos os efeitos, é, sem tirar nem pôr, a política educacional prescrita pela UNESCO aos países periféricos. Neste sentido, o caso da Reitoria é exemplar. Longe de demonstrar explicitamente um alinhamento partidário, o que a Reitoria esposa claramente é a forma de manifestação “social” e “humana” da agenda liberal sobre a educação, tão bem conduzida por Haddad; forma suavizante sem a qual tal agenda dificilmente teria livre trânsito em uma universidade federal em geral, e na UFRJ em particular. Por isso, a relação da atual Reitoria da UFRJ com o governo Bolsonaro pode no máximo se apresentar como oposição à forma grotesca pela qual ele se manifesta, mas não ao conteúdo liberal das suas políticas educacionais.

Desde que foi nomeada Reitora por consulta à comunidade acadêmica em 2019 – consulta, note-se, endossada por Bolsonaro, e que viria a ser elogiada pelo seu segundo ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na ocasião da apresentação do Future-se –, Denise de Carvalho e sua equipe de pró-reitores tem demonstrado em diversas ocasiões seu alinhamento acrítico e sem reservas à ideologia do empreendedorismo e inovação e às parcerias público-privadas. Contudo, tampouco podemos inferir disso que a Reitora é bolsonarista, como na ocasião ela foi chamada por forças da oposição. Como dissemos, seu alinhamento antes penetra naquilo que há de comum e de contínuo entre os governos PT e Bolsonaro. Seguindo o exemplo de Fernando Haddad, quer como Ministro da Educação criador do EBSERH, quer agora fazendo as vezes de lobista da empresa ante ao Consuni, o alinhamento da Reitoria da UFRJ, ao fim e ao cabo das devidas mediações, é com a política educacional do Banco Mundial.

Por isso, apesar de ter prometido em sua campanha para a Reitoria que o tema do EBSERH não estava posto para ser retomado debate, foi sem nenhuma surpresa que, alegando ter mudado de ideia devido à manifestação dos gestores do Complexo Hospitalar e das unidades que compõem o Centro de Ciências da Saúde e que, por isso, deveria respeitar a vontade da comunidade, observamos a Reitora reinserir a pauta da EBSERH no Consuni. Desde então, a Reitora passou a desempenhar papel militante, inclusive em suas redes sociais particulares, a fim de mostrar o suposto avanço de sua gestão com as unidades de saúde (diga-se de passagem, sem a presença da EBSERH) e frequentemente desconsiderando e invalidando o parecer daqueles que se colocam como críticos.

Dessa forma, se valendo de uma conjuntura de recuo das mobilizações de massas, e de um relativo isolamento social derivado da situação de pandemia – que afetou de maneira determinante a capacidade de articulação das entidades universitárias –, a Reitora se espelhou no que tem ocorrido corriqueiramente durante a pandemia na maioria dos sindicatos de direção pelega, oportunista, e não representativa dos interesses das bases: o uso de instrumentos virtuais para tratorar todo o processo e aprovar medidas impopulares. Toda a condução da sessão do Consuni do dia 02 de dezembro deve ser considerada, no mínimo, antidemocrática. Embora o “Movimento Barrar a EBSERH na UFRJ” tenha se mobilizado para comparecer à sessão de forma presencial a fim de pressionar o conselho a barrar a proposta, o caráter virtual da sessão não apenas conseguiu neutralizar esta pressão, como também a Reitora se serviu livremente da plataforma digital para dificultar a fala de pessoas, inclusive de conselheiros estudantis que tiveram seu microfone desligado.

Tal condução foi denunciada como autoritária pelo DCE e Sintufrj, entidades que durante todo o processo se posicionaram decididamente contra a EBSERH e promoveram intensos debates sobre o tema. Segundo posição da coordenação-geral do Sintufrj, “a reunião acabou sendo a síntese de um processo feito a toque de caixa, sem espaço para um debate mais representativo”, e segundo dirigente do DCE Mário Prata, o debate sobre a EBSERH se deu a partir de “estratégias antidemocráticas em todos os espaços com a perspectiva de atropelar e ignorar a possibilidade de debate com a comunidade universitária”[4]. Mas a conjuntura desfavorável também incidiu sobre a articulação das entidades representativas. Se o Sintufrj e o DCE, com o apoio de um grupo de docentes que se puseram contra a EBSERH, demonstraram ímpeto de luta e organização na construção do “Movimento barrar a EBSERH na UFRJ”, junto ao ANDES-SN, à FASUBRA, e outras entidades externas à UFRJ; a ausência da AdUFRJ e da APG nesta luta fragmentou a unidade necessária para a vitória, diferentemente do que ocorreu em 2013.

O sepulcral silêncio da Associação dos Pós-Graduandos da UFRJ durante todo o processo – uma entidade que representa 22% do corpo discente – desempenhou o deletério papel de fragmentar a unidade estudantil e alienar desta luta os pós-graduandos. Nenhuma assembleia convocada, nenhum debate promovido, nenhum posicionamento público. Se a gestão anterior da APG se posicionava decididamente como oposição às intenções liberalizantes da Reitoria, a gestão que viria a assumir em 2020, com ajuda informal porém decisiva da própria Reitoria recém-empossada, e liderada por militantes da juventude do PT e do PCdoB – muitos dos quais sequer eram estudantes da UFRJ, mas para cuja campanha foram deslocados de outras universidades – assumiu desde o início um caráter assistencialista com relação à pequena política universitária, enquanto para as grandes questões passou a exercer um vergonhoso quietismo, funcionando na prática como uma eficiente correia de transmissão da Reitoria. O voto contra a EBSERH que o representante da APG declarou na sessão do Consuni do dia 02/12 cumpriu a função de conservar a duplicidade da entidade que, enquanto, por um lado, procura demonstrar a sua base uma falsa combatividade ao votar contra a proposta, por outro lado, quer garantir as suas boas relações com a Reitoria, tendo em vista que, diante da ausência de mobilização dos pós-graduandos, o seu pequeno voto não faria nenhuma diferença na decisão do Conselho.

Por fim, salta aos olhos o papel degradante representado pela AdUFRJ, a entidade que, no atual contexto, mais teria condição de mudar a correlação de forças da UFRJ. A seção sindical dos docentes da UFRJ e seu entorno de conselheiros atuou de maneira despudorada como uma correia de transmissão da Reitoria (por isso mesmo sarcasticamente apelidada no meio sindical como a PR 8 (Pró-Reitoria). E mais: pode-se afirmar que a AdUFRJ tem cumprido papel diligente em impedir qualquer manifestação mais eloquente de manifestação contrária dos docentes de adesão à EBSERH. Com exceção da possibilidade de escrever um artigo em uma edição do jornal da ADUFRJ e a promoção de um debate com um docente a favor e um contrário à proposta, toda iniciativa advinda deste sindicato em todo o processo foi no sentido de defender a contratualização da EBSERH – sendo utilizado inclusive o argumento de autoridade de Fernando Haddad em sua defesa da parceria, veiculada tanto pelo jornal impresso da AdUFRJ, quanto em um áudio do ex-Ministro da Educação, onde este se dirige diretamente ao Consuni em defesa da sua criação, e que circulou intensamente os grupos de Whatsapp dos docentes justamente na semana que antecedeu a sessão decisiva do Conselho. Neste mesmo período, a seção sindical sequer teve a honradez de convocar uma assembleia para debater o tema e deliberar sobre o posicionamento da entidade, ou mesmo participar da assembleia comunitária convocada pela articulação entre DCE e Sintufrj. E, mesmo agora, depois de votada a proposta e a aprovada a adesão da UFRJ à EBSERH, a AdUFRJ continua a arrolar em suas mídias digitais justificativas para o seu posicionamento rebaixado.

Assim, a atual correlação de forças da UFRJ garante à política social-liberal da Reitoria dois importantes pilares na AdUFRJ e na APG, assegurando dessa forma a divisão entre as diferentes categorias de profissionais e estudantes universitários. Divisão esta extremamente funcional para a Reitoria, que se aproveita do momento de pandemia e do refluxo das mobilizações de massa para “passar a boiada” das medidas privatizantes de sua gestão.

O retorno às atividades presenciais na UFRJ

O ano de 2022, ao que tudo indica, marcará o retorno geral das Universidades às atividades presenciais. Por si só, tal retorno tende a dar uma injeção de ânimo e mobilização na atuação política da comunidade universitária, bem como das entidades representativas da UFRJ, desde que, bem entendido, também as assembleias e as demais atividades políticas retornem à modalidade presencial. De tal modo que parte essencial das lutas que se iniciarão juntamente com o ano letivo deve necessariamente empunhar, antes de tudo, a demanda por assembleias e sessões presenciais dos colegiados. Entidades de direção pelega, como APG e AdUFRJ, a exemplo da Reitoria, que perceberam na mediação das plataformas digitais um antídoto contra as oposições e se acostumaram a se esquivar de situações em que precisassem encarar o protesto das bases, tendem a encontrar no novo contexto maiores dificuldades para controlá-las. O que coloca para os grupos de oposição, sobretudo à AdUFRJ e à APG, a responsabilidade de atuar como um vetor de organização e mobilização das bases de docentes e pós-graduandos, a despeito das direções amigas da Reitoria.

No que concerne à adesão da UFRJ à EBSERH, cabe assinalar que, a despeito da decisão pela abertura de negociações da Universidade com a empresa, o processo de contratualização necessita passar por etapas, no decorrer das quais as entidades representativas da comunidade universitária carregam o dever de fiscalizar, bem como denunciar cada um dos termos da negociação, explicando a toda comunidade os prejuízos de que será vítima a UFRJ e seus HUs. Modelo de contratualização, prazo de vigência, orçamento, cargos, vagas, infraestrutura, fiscalização, são apenas alguns dos itens cujos termos devem ser tema de amplo debate e agitação junto às bases, a fim de que, ultrapassado o pior momento da pandemia, possam os estudantes e trabalhadores universitários se articular para levar a efeito uma intensa mobilização contra a EBSERH em particular, e as contrarreformas liberais em geral.


[1] As demais unidades, que estão espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro, são: Hospital Escola São Francisco de Assis; Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira; Maternidade Escola; Instituto de Ginecologia; Instituto de Neurologia Deolindo Couto; Instituto de Psiquiatria; Instituto de Doenças do Tórax; e Instituto do Coração Edson Saad.

[2] https://ufrj.br/acesso-a-informacao/institucional/fatos-e-numeros/

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

[4] https://sintufrj.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Jornal1351.pdf?fbclid=IwAR3kBkxpG9XxVXVIuf9Y9_D6KME5Sx8vAkierjMlW90DCU9ZzUO_j23bVM4

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