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A conjuntura em 2022 para os revolucionários

De maneira efêmera, da mesma forma que o “Fora Bolsonaro” ganhou as ruas no primeiro semestre de 2021, ele as abandonou na segunda metade do ano. Em sua substituição, o grito de “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”, proferido pelas camadas médias urbanas, cresce como uma onda em 2022, não mais nas ruas, mas sim no interior dos festivais musicais que auxiliam na reprodução ampliada da indústria capitalista.

No lugar da ilusão sobre a perda das ilusões, reforçaram-se as velhas e clássicas ilusões em torno da conciliação de classes de uma chapa Lula-Alckmin, que retornaram com a força de uma irresistível atração. Atração daquelas que reaproximam velhos amantes que passaram por um período de afastamento, ambos em busca de um passado comum idealizado e que, confrontado com o novo encontro, não resiste ao fim de uma noite de verão.

A efemeridade é a marca da conjuntura brasileira atual, o que não poderia deixar de ser quando as camadas médias urbanas hegemonizam a pauta política. Destituídas da alma social dos operários – ausentes enquanto o movimento grevista permanece em refluxo desde 2018 – as camadas médias são a própria expressão da efemeridade política, elevando os clamados ingênuos pela cidadania democrática ao centro da cena e conduzindo a luta política única e exclusivamente às urnas.

Contra os moinhos de vento que se apresentam como os dragões do fascismo, nada melhor que o romântico cavaleiro Lula, de capa e espada sobre seu cavalo Rocinante, a alegoria perfeita para mudar novamente tudo que está aí, sem por óbvio mudar nada de significativo. Também não tardou a ser acompanhado do pragmatismo do capital monopolista, que rapidamente escalou Geraldo Alckmin como Sancho Pança, este que visa manter a fantasia quixotesca nos limites da farsa republicana. A história se repete após os primeiros governos petistas, mas se no início da tragédia original a Carta ao Povo Brasileiro cumpriu seu papel, agora a farsa vem embalada pela descarada aliança com um tucano de plumagem branca. O teatro, por sua vez, segue pouco visto e apenas comentado pelos milhões de famélicos que, do lado de fora, nada sabem sobre o que se passa no palco, mas sentem duramente a deterioração do drama da vida cotidiana.

Resta a dúvida, se o teatro está montado e pouco ou nada pode ser modificado de seu enredo, o que fará a classe operária daqui em diante? E, ainda mais importante, o que cabe aos revolucionários fazer em meio ao teatro democrático de 2022?

Exaustão do governo Bolsonaro ou do movimento “Fora Bolsonaro”?

Os já quase quatro anos de governo Bolsonaro tiveram como marca fundamental a continuidade do período de refluxo das lutas de classes no Brasil, inaugurado em 2018 e que se estende até os dias de hoje. Após um longo ciclo de crescimento das greves (2012-2017), 2018 foi um ano de virada, quando as forças do proletariado brasileiro demonstraram sua exaustão diante de um longo ciclo de luta com conteúdo revolucionário que não encontrou forma revolucionária. Ou seja, mesmo realizando milhares de greves, que pavimentaram as chamadas jornadas de junho de 2013, e que acabaram por culminar na greve geral de abril de 2017, a vanguarda operária da classe não teve a capacidade de se constituir enquanto um partido do trabalho, legítimo representante dos interesses concretos do proletariado e com nítido horizonte revolucionário.

Assim, mesmo que as antigas direções operárias conciliadoras e social-liberais tenham sido profundamente desgastadas – vide o processo de impeachment de 2016 e a ausência de apoio popular ao governo de Dilma Rousseff – nenhuma organização revolucionária logrou substituí-las. Este espaço de radicalidade políticara, por sua vez, foi preenchido pelas embrionárias forças da contrarrevolução, que encontraram sua síntese na eleição de Bolsonaro em 2018 e em seu mote de “mudar tudo que está aí”. Tal como discutido em texto de junho de 2021 da Centralidade do Trabalho[1]:

Em suma, a história cumpriu seu papel progressivo de destruir as formas pretéritas. Tudo que era sólido se desmanchou no ar. Entretanto, sem um prévio acúmulo de forças no interior do movimento operário, o ciclo de ascensão da luta de classes de 2012 até 2018 não conseguiu produzir, sobre as ruínas do passado, uma fase construtiva, onde a decadência visível do PT não encontrou uma tradução na construção de um partido revolucionário de composição operária e influência de massas.

Dessa forma, a síntese de um período de grandes lutas acabou por, contraditoriamente, encontrar seu termo na nascente contrarrevolução. Contrarrevolução que, também ela, ainda não apresentou condições de superar os limites da retórica, permanecendo ainda enquanto embrião e pouco se desenvolvendo em quase quatro anos de governo Bolsonaro.

Mais do que um fascismo em pleno vigor, nos defrontamos com uma república burguesa em pleno funcionamento, garantindo em última instância a acumulação de capital sem abdicar de seu sistema de pesos e contrapesos institucionais. Porém, em meio à grande crise do capital que atravessa a conjuntura brasileira, o funcionamento desta república só pode se dar por meio da ampla polarização de suas expressões políticas. Sendo assim, o presidente segue, retoricamente, em constante polêmica com as demais instâncias do poder republicano, sem nunca, entretanto, colocá-las verdadeiramente em xeque. A polarização permanece sempre restrita à casca do processo político, nunca engendrando uma real crise do Estado, ou seja, algo que abale significativamente a dominação burguesa no Brasil.

De um lado, o proletariado permanece fora de cena, não questionando na raiz o processo de acumulação de capital. As greves, o principal indicador do grau que as lutas de classes atingiram em um país, seguem retraídas. Retração que é fruto de um amplo exército industrial de reserva, que apavora o operário com o fantasma do desemprego, mas também, e não menos importante, fruto da subordinação dos operários brasileiros às direções sindicais interessadas única e exclusivamente em ser as fiadoras do novo processo de conciliação com o patronato, e nunca em promover o desabrochar da luta entre as classes.

De outro lado, as forças sociais da contrarrevolução, condicionadas pela impotência de uma economia dependente no interior de uma severa crise capitalista, não tiveram capacidade de fazer mais do que dar continuidade ao projeto de subordinação completa do Brasil ao novo padrão de reprodução capitalista baseado na especialização exportadora. Também como havíamos afirmado anteriormente no texto de junho do ano passado:

O “mudar tudo que está aí”, quando não rompe com as relações capitalistas da economia brasileira em crise, permanece como bravata eleitoral. Não por acaso, menos de três anos após a eleição de Bolsonaro, o movimento de rua ressurge e, quando da ausência do auxílio emergencial, a popularidade de Bolsonaro aos olhos da massa da população cai consideravelmente. O presidente, desde a campanha, deixava claro que não mudaria em nada o programa econômico liberal que comanda o Brasil. Tanto foi assim que buscou em Paulo Guedes, um Chicago Boy com passagens pelo Chile de Pinochet, o seu “posto Ipiranga” – o guia para tudo relacionado à economia.

Nesse impasse em que o proletariado não avança e a contrarrevolução segue marcando o passo, não existe qualquer espaço para que a crise do capital se transforme em uma crise da república burguesa. Manifestações das camadas médias podem surgir aqui e acolá, com mais ou menos força. Entretanto, sem o motor operário ativo, seguirão incapazes de colocar os fundamentos da república em xeque. Isso porque as ilusões republicanas não são oriundas da mera casca política de uma sociedade em suas intrigas palacianas e em seus jogos discursivos, mas sim, inexoravelmente, da permanência intocada da forma mercadoria que subordina a vida prática e a consciência cotidiana do proletariado. Enquanto o proletário permanece desorganizado como classe seu movimento se resume à busca de, individualmente, salvar sua pobre existência. Sem organização econômica e política, ou seja, sem um movimento operário em marcha e um partido do trabalho à sua frente, o operário segue completamente subsumido à ordem burguesa e às suas formas de alienação política.

Em suma, diante da exaustão momentânea das forças da instabilidade que conduziram Bolsonaro ao governo como via contrarrevolucionária de dominação do capital, e do transitório recuo das mobilizações de massas, a própria ordem republicana retoma paulatinamente as rédeas do processo político nacional. A aliança Lula-Alckmin como atual favorita das eleições de 2022 reedita a alternância política entre petistas e tucanos que conduziu a chamada Nova República. A história se repete e, ao contrário do término da Nova República tal como propagandeado pelo romantismo revolucionário, o que vemos é sua retomada sob uma nova coloração – não mais trágica, mas sim farsesca.

Se o governo Bolsonaro encontrou sua exaustão enquanto governo e a tendência das eleições de 2022 é uma vitória da chapa Lula-Alckmin, o significado profundo deste fato é a incapacidade de a contrarrevolução abandonar seu estágio embrionário e se desenvolver, atingindo a maturidade. Entretanto, mesmo diante de uma provável derrota eleitoral de Bolsonaro, ela contará com, no mínimo, mais de 35 milhões de votos. Assim, mesmo que a contrarrevolução não tenha obtido a força de conduzir um governo contrarrevolucionário, deverá sair fortalecida como oposição ao futuro governo da cada vez mais estreita conciliação de classes, talvez encontrando aí as condições para de fato se desenvolver.

Já do ponto de vista das forças revolucionárias, antes de avaliar suas reais perspectivas tanto em 2022 quanto no próximo período, é necessário que caracterizemos o atual estágio da crise capitalista internacional e seus desdobramentos na particularidade brasileira.

A nova fase da crise capitalista internacional

A grande crise capitalista inaugurada em 2008 vem atravessando distintas fases. Em uma típica crise de superprodução de capital, impõe-se ao capital a necessária depreciação do valor como forma de retomar o ciclo expansivo da acumulação. Diante disso, o valor dos elementos do capital precisa ser desvalorizado, ocorrendo isso tanto através da queima de títulos e ações – tal como ocorrido na fase inicial da crise em 2008/2009 –, das políticas estatais de austeridade que visaram reduzir custos sociais e desvalorizar o valor da força de trabalho – especialmente a partir de 2010 – e da grande queda do preço das matérias-primas – tendo 2012 e 2015 como anos marcantes nesse sentido. Ademais, para esse movimento de desvalorização dos elementos do capital, a ampliação do exército industrial de reserva no mundo todo, o que apenas superficialmente aparece na elevação das taxas de desemprego e no avanço da subocupação, é decisiva. Ao pressionar pela queda do valor da força de trabalho, o aumento da superpopulação relativa permite a ampliação da exploração, ou seja, ampliação da taxa e da massa de mais-valia que pode ser redirecionada para salvar a propriedade privada capitalista e retomar o vigor da acumulação de capital.

Tal queima do valor dos elementos do capital foi geradora de ampla instabilidade política no mundo todo, fato que tem se revertido em diversas explosões sociais em vários países desde aquele momento. Nestas explosões sociais, a classe operária tem se apresentado desorganizada, não demonstrando, ainda, capacidade de superar as antigas experiências reformistas consolidadas nos partidos trabalhistas e comunistas herdeiros tanto da social-democracia quanto do stalinismo. Já as expressões primaveris de uma suposta nova esquerda – tal qual o Podemos na Espanha ou o Syrisa na Grécia, que tanta inspiração trouxeram ao PSOL no Brasil –, ao não superarem o horizonte da cidadania na política, rapidamente foram reincorporadas como novos pilares da ordem do grande capital. Diante disso, tal como no caso brasileiro, o conteúdo revolucionário despertado pela crise do capital não foi capaz de ganhar forma revolucionária, abrindo-se o espaço necessário para a emergência de expressões mais ou menos desenvolvidas da contrarrevolução em diferentes países.

Neste quadro de instabilidade provocada pela crise e visando reduzir o avanço da ingovernabilidade burguesa, os Estados imperialistas e as potências econômicas regionais buscam minimizar a queima do capital em seus territórios, utilizando de diversos mecanismos econômicos e políticos para exportar os efeitos mais nocivos da crise para o estrangeiro. Não por acaso, desde o início da crise ocorre uma crescente guerra econômica e comercial entre as potências, fato que tem gerado grande reorganização da divisão internacional do trabalho e uma escalada permanente das tensões mundiais – tendo a Guerra na Ucrânia como um primeiro e marcante momento do desenvolvimento deste processo.

Um dado marcante deste acirramento da concorrência entre os Estados imperialistas e as potências econômicas regionais tem sido uma severa inflação mundial do preço das mercadorias, em especial das matérias-primas e dos alimentos que servem como base alimentar do proletariado. Diante de uma economia mundial capitalista, comandada pela anarquia da produção, a desarticulação das cadeias globais de produção de valor e mais-valia desde o final de 2020 passou a ser um sério problema a ser enfrentado pela classe dominante dos diferentes Estados nacionais. Desarticulação inaugurada pelo acirramento da guerra econômica e comercial, acentuada pela pandemia e agora redobrada com o conflito militar no centro europeu, que tem gerado gargalos que começam a surgir e se multiplicar em vários pontos fundamentais do processo de produção e circulação de mercadorias.

Com isso, o encarecimento generalizado das mercadorias passa a ser um dos elementos centrais a ser observado no ciclo atual das lutas de classes no mundo, fator central de desestabilização da dominação burguesa inclusive nos países de maior desenvolvimento capitalista. Para além disso, é preciso acompanhar o desdobramento do ciclo da acumulação de capital em escala internacional, já que a elevação das taxas de juros dos países centrais, visando controlar os preços, tem grande potencial de deflagrar novas rodadas de queima de capital em escala mundial, amplificando ainda mais a crescente ingovernabilidade da economia capitalista de vários e distintos países.

As lutas de classes no Brasil

O Brasil detém a economia capitalista dependente que mais avançou no processo de industrialização no século XX. Entretanto, ao nunca romper com a dependência e o subdesenvolvimento, já desde o final do século passado e especialmente no século XXI que o país vem colhendo uma profunda regressão da sua posição na divisão internacional do trabalho. Nunca atingimos o patamar de desenvolvimento das forças produtivas dos países imperialistas e fomos substituídos como plataforma intermediária de desenvolvimento industrial por países como a China. Não por acaso, a crise capitalista da última década tem reforçado a especialização da economia nacional na produção de matérias-primas de origem agrícola e mineral voltadas para exportação, tendo como contrapartida a retração de setores de maior composição orgânica do capital, tal qual a indústria automobilística. Esta regressão ao mesmo tempo que reforçou a dependência do Brasil em relação aos países imperialistas, também ampliou sua vinculação comercial as às economias asiáticas, sendo este mais um fator que contribuiu para a rápida exaustão da política externa recheada de bravatas de Bolsonaro em seu inicial ativismo pró-Estados Unidos contra um fantasioso comunismo chinês.

Entretanto, mesmo que registrando um amplo crescimento da relação comercial com a China, o Brasil continua, desde 1964, sob a forte integração econômica e política com os capitais estadunidenses e europeus. As transnacionais operantes no país ainda são majoritariamente originárias destas economias, sendo que o capital de suposta propriedade local tem forte participação acionária de fundos de investimento com sede nos países imperialistas, em especial os Estados Unidos. Para além disso, a desvalorização da moeda nacional, a subordinação dos preços locais à sua cotação em bolsas de valores dos países centrais e o cenário de crise da última década favoreceu ainda mais a desnacionalização da nossa economia, que continua afetando desde a produção de mercadorias para consumo do proletariado até a de energia e matérias primas.

Desta forma, no mesmo ritmo da ampliação da dependência a classe dominante brasileira entrega o destino da nação nas mãos dos desdobramentos futuros dos países imperialistas, majoritariamente os EUA. Não por acaso, a dinâmica política brasileira, enquanto não for interpelada pela organização do proletariado, continuará aceleradamente se equiparando à dinâmica política das terras de Joe Biden. Assim, tal como lá, também aqui deveremos vislumbrar em 2022 uma derrocada eleitoral de Bolsonaro, que, da mesma forma que Trump, demonstrou completa incapacidade de restaurar bases sólidas de governabilidade burguesa em meio aos desdobramentos da crise do capital. Entretanto, ambos devem permanecer ativos à espreita da deterioração da popularidade de quem assumiu e assumirá a cadeira elétrica da presidência da república de países regidos pela crise capitalista.

O fundamental a ser vislumbrado é que, neste momento, o cenário das lutas de classes no Brasil permanecerá condicionado pela dinâmica da luta econômica e política travada em escala mundial, tendo em vista as particularidades da economia dependente brasileira. País de grande e diversificada economia, enorme população e estratégico para a dominação imperialista dos EUA na América Latina, o Brasil e sua classe dominante não estão dispostos a aventuras abertamente contrarrevolucionárias sem que isso seja, de fato, uma questão decisiva para a dominação burguesa. Assim, qualquer perspectiva de um golpe de Bolsonaro não passa de uma eficiente peça publicitária que serve a um objetivo central: reforçar todos os mecanismos de dominação burguesa por dentro da ordem institucional criada a ferro e fogo pela ditadura de 1964 e reafirmada com flores pela Constituição Federal de 1988.

Mesmo Bolsonaro sabe que é uma figura mais útil como alguém que apenas polariza a república, mas que não a incendeia. Político com faro apurado após décadas de participação no jogo da política institucional, sabe que seu valor, no quadro atual, está em permanecer como uma reserva da dominação burguesa, uma contrarrevolução apenas em germe, que segue como ameaça aguardando condições mais favoráveis para se desenvolver no futuro. Diante disso, o quadro político que amolda a luta do proletariado no Brasil permanecerá dentro dos limites atuais da luta política e econômica, sem qualquer espaço para aventuras daqueles que desprezam estes dois terrenos em busca de uma idealizada crise terminal da república burguesa.

Na esteira do refluxo do movimento operário[2], a república burguesa que foi consideravelmente abalada no ciclo de ascensão das lutas de classes entre 2012 e 2017, teve as condições necessárias para se reorganizar. Aplicou-se um severo processo de ampliação da exploração da força de trabalho, com medidas de destaque tal qual os cortes orçamentários de Dilma (2015), a contrarreforma trabalhista de Temer (2017) e a contrarreforma previdenciária de Bolsonaro (2019). Todas essas ações ofensivas do capital contra o proletariado, somadas a muitas outras, foram levadas em frente respeitando a institucionalidade republicana tradicional e até mesmo fortalecendo-a, ou seja, sem qualquer necessidade de ruptura com a ordem vigente.

Como contrapartida, o proletariado brasileiro acumula uma década de perdas consideráveis em suas condições de vida, o que se sustenta em um elevado exército industrial de reserva, em uma estrutura partidária, sindical e de movimentos populares dominada pelo social-liberalismo e em um conjunto de ilusões em torno dos clamados pela cidadania que alimentama consciência das camadas médias urbanas. Neste quadro, sem a retomada das forças propulsoras do movimento do proletariado, é certamente impossível que qualquer perspectiva revolucionária ganhe contornos de massas, permanecendo todas elas mais ou menos restritas ao estreito terreno da atuação política e econômica ainda hegemonizada pelas forças do social-liberalismo.

Após o desgaste profundo colhido pelo PT e seus aparelhos no interior do movimento popular e operário entre 2012 e 2018, a impotência do governo Bolsonaro em resolver qualquer um dos aspectos do abismo social, somado a sua capacidade de implementar uma política de choque contra os valores cidadãos das camadas médias e de parcelas da pequena burguesia, acabou por reconduzir o PT e o coro por Lula aos operários e às camadas médias organizadas. No interior das direções e das bases dos sindicatos, do movimento estudantil e dos demais movimentos populares, o efeito Bolsonaro reconduziu aos braços do PT uma nova adesão ao seu projeto de conciliação de classes. Que reste claro, sem a capacidade de os revolucionários conquistarem para si a direção do movimento operário e popular organizado nos próximos anos ou décadas, não será uma retórica mais ou menos radical que promoverá a superação do petismo enquanto direção de amplas parcelas do proletariado e das expressões mais proletarizadas das camadas médias.

Tal processo de superação do social-liberalismo que tem no PT sua síntese política e organizativa, no entanto, pressupõe a movimentação das massas proletárias na luta econômica cotidiana, em suas greves e na organização e movimentações públicas que delas derivam.  Somente em um novo ciclo de expansão do movimento grevista é que o conteúdo revolucionário poderá ser posto novamente em movimento, reabrindo espaço para a construção de formas políticas e organizativas que busquem a direção deste processo de avanço das lutas de classes. Portanto, a questão principal a ser observada é a capacidade de as contradições atuais da sociedade capitalista criarem as condições para tal retomadas das lutas de classes no Brasil.

Desse ponto de vista, portanto, devemos observar prioritariamente dois elementos centrais da conjuntura inauguradas neste ano de 2022 e que ainda tiveram pouco tempo para se desenvolver. Em primeiro lugar, a escalada voraz e generalizada dos preços, tanto no Brasil quanto no mundo, corroendo de maneira acelerada o pouco que restou das mínimas condições de reprodução da vida do proletariado e ampliando o processo de proletarização das camadas médias e de setores da pequena burguesia. Desta forma, a crescente inflação das mercadorias de consumo do proletariado, fator que esteve na base dos grandes e prolongados ciclos de mobilização operária no Brasil, novamente passa a ser um elemento presente na conjuntura nacional, sem qualquer possibilidade de uma retração significativa de tal quadro nos próximos anos.

Em segundo lugar, o fim das restrições ao trabalho organizativo presencial devido a à diminuição do número de mortos por conta da Covid-19 é outro fator fundamental para a retomada das lutas de classes. Ressurge a possibilidade perdida nos últimos dois anos – não à toa os piores em termos de número de greves – do resgate de formas mais eficientes de disputa política e organizativa, sendo a luta pela realização de reuniões, atos e assembleias proletárias presenciais um elemento decisivo para limitar os mecanismos de controle burocrático dos aparelhos da classe que foram reforçados com a dinâmica única e exclusivamente limitada pelas ferramentas virtuais.

Diante disso, ambos estes fatores têm dado força ao início de mobilização dos servidores públicos e de algumas categorias operárias em 2022, incluindo a realização de importantes greves – tal qual a da CSN. Não podemos esquecer, por óbvio, que tanto o patamar elevadíssimo da magnitude do exército industrial de reserva no país quanto a captura subjetiva da classe ao processo eleitoral de 2022 são fatores que atuam em sentido contrário, constrangendo a maior agressividade que poderíamos verificar neste início de retomada das lutas. Entretanto, a pequena diminuição do desemprego e a quebra das ilusões que um possível governo de conciliação de classes comandado por Lula-Alckmin gerará no proletariado brasileiro são elementos que apontam para o desenvolvimento dos motores que darão força para a retomada das lutas de classes nos próximos anos.

Os desafios dos revolucionários em 2022

É este contexto de crise capitalista e sanitária, temporária retração das lutas de classes, fragmentação das organizações revolucionárias, e sequestro da luta política pela polarização eleitoral entre Lula e Bolsonaro, que assalta a esquerda socialista brasileira com a pergunta: o que fazer?

A Centralidade do Trabalho já declarou, em diversas ocasiões, que o objetivo estratégico dos socialistas e revolucionários no atual período histórico do país deve ser a organização do proletariado em partido político. Esse diagnóstico não é uma inovação da nossa organização. Declararam também isso, na década de 2000, partidos da esquerda socialista que romperam abertamente com o governo Lula. Com a nítida consciência de que o PT não mais desempenharia o papel histórico do partido do trabalho nas lutas de classes, a ala radical da esquerda brasileira compreendeu que os trabalhadores brasileiros doravante estariam carentes de um instrumento de centralização, organização, e direção política do seu movimento. O próprio surgimento do PSOL foi um evento histórico derivado dessa compreensão por parte dos “radicais do PT”. Hoje, diante do ressurgimento do PT como alternativa republicana da dominação capitalista, e da possível falência do PSOL como uma “alternativa de esquerda” ao PT, a necessidade da construção do partido do trabalho aos poucos retorna ao debate entre os revolucionários.

A nosso ver, considerado em sua dimensão histórica, o processo de formação do partido do trabalho não pode ser apenas fruto da vontade de alguns agrupamentos de vanguarda em um momento de retração das lutas de classes, mas poderá nascer somente como produto organizativo de um período de alta mobilização das massas trabalhadoras e da atuação decisiva dos revolucionários nesse processo. O caráter cíclico das crises capitalistas e, por conseguinte, das sublevações espontâneas das massas, é uma condição objetiva necessária para desencadear o processo de organização da classe em partido. Por isso, o dever da esquerda socialista durante o período de descenso das lutas, deve ser a formação de uma vanguarda política organizada que possa, no período de ascenso, assumir o papel de elemento consciente e atuar de maneira decidida para elevar a luta dos trabalhadores a um patamar revolucionário.

A questão central que a esquerda socialista deve se colocar no período que se segue é a seguinte: diante de um horizonte de possível retomada dos movimentos de massas, estarão os revolucionários preparados para dirigi-los, mesmo frente a um eventual governo Lula? No último ciclo de lutas (2011-2018), a esquerda socialista se demonstrou incapaz de desvincular sua imagem, aos olhos das massas trabalhadoras, da imagem dos governos do PT; viu assim a direção política de boa parte dos movimentos contestatórios ser tomada pela direita ultraliberal e conservadora. O impeachment de Dilma, a prisão de Lula, e a ascensão de Bolsonaro, contribuíram para empurrar a nova “esquerda radical” de volta para os braços do PT, reforçando a hegemonia petista que essa mesma esquerda havia antes decretado como esgotada.

Diante disso, serão os revolucionários capazes de demonstrar independência e radicalidade necessárias para disputar com o bolsonarismo a liderança dos movimentos de contestação contra as inevitáveis medidas impopulares de um governo de conciliação de classes de Lula e Alckmin? Ou atuarão como cúmplices do PT e do consequente fortalecimento do bolsonarismo como força de oposição? Esses desafios impõem às organizações revolucionárias no período que se segue algumas tarefas bem determinadas no âmbito das lutas econômicas e políticas.

Sobre as lutas econômicas, devemos destacar que a atuação neste âmbito é por óbvio a mais fundamental linha tática da esquerda socialista. Este é o espaço onde os revolucionários entrarão em contato direto com os elementos mais avançados da classe operária, ombro a ombro nas lutas cotidianas por melhores condições de trabalho. A capacidade de inserção e influência no movimento sindical e em qualquer espaço de organização das lutas econômicas da classe é o melhor critério para medir o grau de influência dos revolucionários sobre o movimento operário. Trata-se, portanto, de uma linha de atuação que possui importância estratégica, visto que a inserção nas lutas econômicas da classe, mesmo em um momento de refluxo, não apenas contribui para elevar o nível de consciência política dos trabalhadores, não apenas qualifica os próprios quadros revolucionários pela experiência dos mais diversos métodos de luta, não apenas atrai para a luta socialista os elementos mais avançados da classe operária, mas também os posiciona nos pontos nevrálgicos das explosões grevistas.

O último período de ascenso das lutas operárias consolidou a desmoralização das direções pelegas e das velhas burocracias sindicais, mas também demonstrou a então incapacidade da esquerda socialista de substitui-las. Como efeito, temos observado nos últimos anos um baixíssimo grau de organização dos trabalhadores em suas lutas mais elementares em torno do salário e das condições de trabalho. O atual ciclo de refluxo do movimento operário, iniciado em 2018, teve nos anos de 2020 e 2021, sob influência da pandemia, o seu número mais baixo de greves.  Contudo, o início de 2022 já apresenta um cenário um pouco diferente. Com o paulatino controle da pandemia e o consequente afrouxamento das normas de distanciamento social, já é possível identificar neste início de ano um deságue das reivindicações operárias represadas por anos de perdas acumuladas, desta vez sob a forma de greves e mobilizações sindicais em diferentes categorias ao redor do país. Este cenário pode indicar, senão uma retomada do ciclo de lutas de massas, ao menos um período de recuperação e alargamento das mobilizações operárias. Em todo caso, trata-se de um cenário propício para a ampliação da atuação sindical dos revolucionários.

Por meio dessa atuação sindical, e tendo ela como premissa, a militância socialista tem sempre em vista o objetivo estratégico de unificar as lutas parciais do proletariado em uma luta política organizada contra toda a classe burguesa. É precisamente esse papel nas lutas políticas, no enfrentamento da classe unificada contra a burguesia e o Estado, que os sindicatos, como forma de organização enraizada nas bases trabalhadoras, possuem para as organizações revolucionárias a sua maior importância. Por isso, um dos grandes desafios que a conjuntura impõe para a esquerda socialista neste ano eleitoral é precisamente impedir que as pautas políticas a serem tocadas pelos sindicatos em campanhas nacionais de lutas (por exemplo, contra a privatização da Petrobras) se restrinjam a fazer campanha para eleger Lula.

Sobre as lutas políticas, é uma recorrência histórica o fato de que o refluxo do movimento operário tende a reforçar a sua forma institucional; que, no caso específico do Brasil, tem sido subsumida desde o ano passado à polarização eleitoral entre Lula e Bolsonaro. Polarização esta que, neste ano eleitoral em específico, vem contagiando não apenas as parcelas organizadas da classe trabalhadora, mas também frações cada vez mais amplas que momentaneamente voltam a sua atenção para a política. O caráter plebiscitário que assume as eleições deste ano torna este processo ainda mais candente. Por óbvio, neste cenário, a ativa participação nas campanhas eleitorais é uma tarefa da qual os revolucionários não podem se abster.

Por isso, devem os comunistas, os socialistas, os revolucionários, lançar onde for possível seus próprios candidatos, a fim de divulgar sua posição independente, de elevar a consciência política das massas, e de auxiliar na sua organização e em suas lutas cotidianas. Se é certo que o PT e seus satélites usarão neste ano as lutas concretas dos trabalhadores para o seu fortalecimento eleitoral, os revolucionários também saberão, ao contrário, usar as suas próprias campanhas eleitorais para fortalecer as lutas econômicas e políticas dos trabalhadores, firmando assim a confiança da classe em nossas posições. Isso inclui o nosso posicionamento sobre a disputa presidencial.

Há consenso em praticamente toda a esquerda socialista de que a derrota eleitoral de Bolsonaro é um dos nossos desafios mais claros e imediatos. Mas há também o consenso de que a atuação dos revolucionários nesta luta não pode se dar de modo a reforçar nos trabalhadores qualquer ilusão de que um próximo governo Lula/Alckmin não será um governo do grande capital contra o trabalho. De modo que o problema que de fato assalta os socialistas não é tanto de posicionamento entre Bolsonaro e Lula, mas da forma apropriada de participação nas campanhas eleitorais, isto é, do conteúdo ideológico da campanha. 

Bolsonaro e sua base social constituem a reserva contrarrevolucionária da dominação burguesa no Brasil, seu governo é abertamente hostil aos trabalhadores e oprimidos. Nele, os aparelhos repressivos do Estado, legais e ilegais, ganham em força material, legitimidade e autonomia ideológica. Não há dúvidas, portanto, quanto à necessidade de fazer Bolsonaro perder a sua maioria político-eleitoral, e de impedir que permaneça por mais quatro anos na presidência fortalecendo as suas bases e tensionando o Estado em favor de um regime policial ou militar. Mas também não há quaisquer dúvidas na esquerda socialista sobre o fato de que um futuro governo Lula/Alckmin, ainda que sob um véu republicano, dará continuidade à agenda ultraliberal do capital monopolista; e de que, consequentemente, a insatisfação popular derivada desta agenda pode ser capitalizada pelo próprio Bolsonaro, então como oposição.

“Não basta derrotar Bolsonaro, é necessário derrotar o bolsonarismo” é hoje um mantra amplamente difundido entre a esquerda. Não há uma única organização deste campo político que não tenha a plena consciência do perigo de fortalecimento do bolsonarismo enquanto oposição a um governo Lula. Impõe-se à esquerda, portanto, uma tarefa de duas etapas. A primeira delas, a derrota eleitoral de Bolsonaro, parece bastante simples à primeira vista. Bastaria para isso engrossar as fileiras da frente ampla eleitoral encabeçada pela chapa Lula/Alckmin. Mas também é previsível a tática da frente ampla para derrotar a futura oposição bolsonarista: a defesa intransigente do governo Lula e das instituições burguesas. Essa fórmula, a ser seguida à risca pela esquerda social-liberal que compõe a frente ampla, e que provavelmente comporá o governo Lula, é precisamente a fórmula do recrudescimento inevitável do bolsonarismo na oposição.

Lutar contra o bolsonarismo, para os marxistas, nada mais significa do que lutar contra a influência ideológica da pequena burguesia reacionária sobre a classe trabalhadora. Essa luta se dá em diversas frentes. No entanto, em nenhuma delas avançamos um único passo ao diluir os interesses próprios dos trabalhadores em uma grande frente policlassista da “democracia contra o fascismo”. Mas, pelo contrário, avançamos na luta contra o bolsonarismo precisamente ao reforçar a independência ideológica e política da classe trabalhadora frente às outras classes. Portanto, a luta real contra o bolsonarismo passa necessariamente também pela luta contra a influência ideológica que os trabalhadores sofrem das camadas médias democratas, da chamada esquerda social-liberal. A única forma de derrotar uma eventual oposição bolsonarista não é, portanto, encastelando-se no governo Lula, mas conseguindo se apresentar às massas trabalhadoras como uma oposição ainda mais radical, como uma oposição verdadeiramente socialista, como um bastião dos interesses imediatos e históricos dos trabalhadores. E este ingente desafio não começa apenas após a derrota eleitoral de Bolsonaro, mas deve ser encarado já nas campanhas eleitorais deste ano.

Do ponto de vista do marxismo revolucionário, portanto, o conteúdo ideológico da campanha eleitoral contra Bolsonaro deve ter precisamente a função específica de preparar o terreno para a esquerda socialista não apenas se apresentar às massas como uma força política totalmente independente de um futuro governo Lula/Alckmin, mas sobretudo, em seguida, como a principal força de oposição ao governo. Denúncia intransigente do governo Bolsonaro e repúdio a tudo o que ele representa; crítica, cobrança e pressão aos posicionamentos de Lula e dos políticos e partidos da frente ampla; compromisso inflexível somente com as pautas e lutas concretas da classe operária. Diante da atual polarização, com o evidente rebaixamento do debate político a pautas meramente morais e de costumes, as campanhas dos socialistas têm o dever de destacar os grandes temas de interesse dos trabalhadores.

Vale assinalar, por fim, que um novo governo Lula, por si só, oferece uma inestimável oportunidade à esquerda socialista de demarcar de uma vez por todas e aos olhos do povo as suas diferenças com o PT. A tão alardeada “alternativa de esquerda ao PT”, com o PT novamente atuando como partido da ordem burguesa, terá mais uma chance para despontar na cena política. Encontra-se em jogo não apenas a derrota do bolsonarismo, mas também da hegemonia social-liberal sobre a esquerda. E aqui repetimos a questão: estarão os revolucionários preparados?


[1] https://centralidadedotrabalho.com.br/as-lutas-de-classes-no-brasil-a-tatica-dos-revolucionarios-em-torno-do-fora-bolsonaro/

[2] Lembremos que as greves seguem em reduzido patamar desde a virada de 2017 para 2018, tal como tratado no texto da Centralidade do Trabalho de junho de 2021.

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