Nos últimos dias, os noticiários econômicos repercutiram a adesão de cooperativas vinculadas ao MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ao mercado de capitais. A inovação, somada ao cada vez mais esparso e reduzido número de ações reivindicatórias de distribuição de terras, é reveladora de um redirecionamento das prioridades do movimento. Fica claro o rebaixamento de objetivos em sua trajetória, ditado pelo horizonte conciliatório dos períodos de ascensão eleitoral e de mandatos governamentais do petismo, com governabilidade coligada a amplos setores da burguesia, inclusive setores agroindustriais, e com interesses na continuidade da propriedade fundiária altamente concentrada no Brasil.
O MST, em seu 1º Encontro, em 1984, na cidade de Cascavel/PR, definiu o objetivo para a sua formação quanto à organização nacional na deliberação que trouxe a identidade pretendida:
“Queremos ser produtores de alimentos, de cultura e conhecimentos. E mais do que isso: queremos ser construtores de um país socialmente justo, democrático, com igualdade e com harmonia com a natureza”
O movimento que, de certa forma, avoca-se como herdeiro das Ligas Camponesas, foi constituído a partir de lutas pela terra no estertor da ditadura militar, lideradas por trabalhadores do campo sob a predominante influência do progressismo católico, notadamente da CPT – Comissão Pastoral da Terra e das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base.
Em 1985, em Curitiba/PR, no seu 1º Congresso, o MST consolidou sua formação, deliberando pelas insígnias de oposição radical ao latifúndio: “Terra para quem nela trabalha” e “Ocupação é a Única Solução”.
Embora as bandeiras deliberadas nos dois eventos originários do MST não assumissem meta por ruptura drástica ao capitalismo, até mesmo porque seu limite era o alcance da propriedade ou concessões de terra que se finalizariam na constituição de pequenos produtores rurais, o pleito por reforma agrária combateria a concentração de terras. Em um país com caracterização econômica de perfil, inicialmente colonial e escravocrata, e, posteriormente, subdesenvolvido, dependente e periférico, bem como com amplo peso histórico do latifúndio e do, contemporaneamente, denominado agronegócio, a reforma agrária confrontaria uma das principais balizas da subordinação do Brasil no cenário global do capitalismo, como predominante e permanente produtor de matérias-primas agrícolas e minerais.
Foi na esteira da formação do MST que logo em seguida os latifundiários se organizaram na UDR – União Democrática Ruralista. Formada inicialmente em 1985, foi composta por fazendeiros da região conflagrada por conflitos de terra, no Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo. Sob o princípio de que o direito à propriedade privada da terra se sobrepõe ao direito à vida dos trabalhadores em luta pela terra, em 1986, a UDR toma abrangência nacional, defendendo o enfrentamento armado às ocupações articuladas pelo MST.
Os ataques aos movimentos pela terra passaram por intensificação, deixando muita morte e violência sobre os trabalhadores rurais e suas lideranças pela ação truculenta do latifúndio e também pela repressão de estruturas do estado brasileiro. Assim foi no emblemático caso do massacre de Eldorado do Carajás/PA, há 25 anos, quando em marcha reivindicatória por assentamento de famílias sem terra, a polícia militar paraense desferiu ataque e assassinou 21 trabalhadores rurais, em condição indefesa.
O movimento não arrefeceu mesmo com as agressões do latifúndio, seja pela violência no campo ou pela profunda influência política no ambiente institucional do executivo, do legislativo (com a extensa bancada ruralista, sempre organizada, desde a Constituinte, em 1987/1988) e pela aparentemente deliberada não resolutividade dos conflitos do campo no espaço jurisdicional.
Nas décadas de 80 e 90 e início dos anos 2000, as lutas, ocupações e marchas do MST mostraram grande capacidade organizativa, o que levou muitos trabalhadores de centros urbanos, afetados pelas crises econômicas, pelo desemprego estrutural e pela falta de perspectiva de renda, a se integrarem na luta por assentamentos rurais, bem como serviu de inspiração para muitos ativistas e militantes das cidades, destacadamente na juventude.
Já em meados dos anos 90, com numerosos assentamentos conquistados nas suas lutas, por meio de persistentes acampamentos – debaixo de “lonas pretas” – em beiras de estradas e áreas ocupadas, o MST passa a atentar pela busca de viabilidade econômica desses assentamentos e em seu horizonte entra esforços para conquista de parcelas de orçamentos e financiamentos públicos específicos. Nesse foco, é criado pelo governo FHC, em 1999, o Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, dissociando das atribuições do Ministério da Agricultura as questões envolvendo reforma agrária e agricultura familiar, bem como abrindo um meio negocial entre governo e movimento, em uma notória ação para o abrandamento das lutas extrainstitucionais e concretas que denunciavam e confrontavam a injusta e crescente concentração fundiária brasileira.
É também a partir da segunda metade da década de 90, que o MST gira grande força para o questionamento, não só da distribuição fundiária, mas também para o modelo de produção agrícola e pecuária que se associa à concentração da propriedade da terra. Modelo esse voltado para suprir demandas do mercado internacional de commodities.
O movimento se contrapõe ao paradigma agroexportador defendendo a produção de alimentos pela agricultura familiar, de forma agroecológica, em contenda direta com a panacéia tecnológica predominante, trazida pela “Revolução Verde”, com intenso uso de agrotóxicos, sementes híbridas e transgênicas e monoculturas. Essa forma de produção, contempla alta lucratividade às grandes empresas químicas de agrotóxicos e adubos, de sementes patenteadas, de maquinários agrícolas e de alimentos industrializados e que, em regra, são empresas embutidas em oligopólios de gigantescas corporações transnacionais.
Com sua direção umbilicalmente ligada ao PT – Partido dos Trabalhadores, durante os governos Lula e Dilma, em que pese à queda na efetivação de novos assentamentos de reforma agrária, a prioridade ao financiamento e políticas públicas benévolas ao agronegócio exportador e a regularização dos transgênicos no país por normatizações esdrúxulas, as políticas mitigatórias e focalizadas do governo petista, como, por exemplo, o PAA – Plano de Aquisição de Alimentos de Agricultura Familiar, passam a satisfazer em grande medida o movimento. Já o enfrentamento organizado ao latifúndio, na prática, esvai-se quanto ao principal objeto da organização do MST, tornando-se quase que tão-somente um elemento retórico da organização.
Em contrassenso com as motivações originárias do MST, registre-se, que nos governos Lula e Dilma, o processo de concentração de terras no Brasil avançou, inclusive com a permissiva reforma do Código Florestal. Este viabilizou e regularizou o avanço irrefreável das fronteiras agrícolas sobre áreas de cerrado e floresta, além de criar situações de desobrigação de reposição florestal e amenização de compensações pelo aceite de situação considerada como consumada de supressões de flora e, consequentemente, de fauna nativa.
Os dados dos Censos Agropecuários de 2006 e 2017, do IBGE, que reportam representativo intervalo de tempo dos governos petistas, relatam um salto na ocupação total de áreas por estabelecimentos rurais com mais de 1.000 hectares, de 45,0%, em 2006, para 47,6%, em 2017. Outro indicativo da concentração fundiária e da expansão desenfreada da fronteira agrícola durante os governos petistas é o crescimento em 17,6 milhões de hectares da área ocupada por estabelecimentos rurais no período entre os dois censos, ainda que mais de 102 mil estabelecimentos rurais deixassem de existir no mesmo período. Provavelmente, entre as causas, a incorporação ou agregação entre estabelecimentos rurais adjacentes, unificando-os, consequentemente, reduzindo o número de proprietários ou possuidores, concentrando domínio ou posse de terras.
Mais focado na sustentabilidade econômica dos assentamentos já efetivados, o MST aposta na formalização institucional com a criação de pessoas jurídicas que viabilizem as negociações comerciais e de compras governamentais. Hoje, são 160 cooperativas, 120 agroindústrias e 1.900 associações de assentados (fonte dos dados: mst.org.br). Torna-se clara a opção pela lógica da “economia solidária”, adaptada aos chamados “nichos de mercado”, absolutamente consentidos no ambiente liberal, pois sem qualquer risco de mutabilidade efetiva ao regime capitalista. Além disso, de satisfação ao consumo de uma pequena e cada vez mais diminuta parcela economicamente remediada da população. A distinção que valora para mais os produtos do referido nicho é a sua rotulagem como produção social e ecologicamente justa, permitindo um consumo supostamente mais virtuoso e inexigível de penitências de consciência pela já citada reduzidíssima camada populacional.. De certa forma, a franca crítica e confronto com o modelo tecnológico de produção agropecuária, voltado para a agroexportação e focado em extensas monoculturas, também passa ao mero campo retórico e, na ação prática, por significativa moderação.
É nesse contexto que não causa estranhamento a recente notícia da entrada de cooperativas ligadas ao MST no mercado de capitais, com o registro na CVM – Comissão de Valores Mobiliários de fundo que se baseará em “Certificados Recebíveis do Agronegócio”, uma espécie de “papéis” de mercado futuro das safras e da produção das cooperativas, com títulos “podendo até ser negociados no mercado secundário da Bolsa de São Paulo, a depender de sua liquidez”, segundo matéria do portal “El País”.
A iniciativa é orientada pelo ex-banqueiro e atual consultor de investimentos Eduardo Moreira, que prega uma “refundação” do capitalismo, propondo a irrealizável suplantação de um paradoxo evidentemente insuperável, tornar o capitalismo humanizado: “ético” e “consciente”, conforme suas palavras nas reportagens sobre o tema, como se tivéssemos aqui uma mera questão moral a resolver.
Já a matéria no portal da revista “Exame”, em seu artigo, expõe uma espécie de contrapartida à aventura no mercado de capitais: a abdicação das ocupações de terras organizadas pelo MST, conforme trecho a seguir:
“Desde o ano passado, o MST tem deixado as invasões de terra em segundo plano para se concentrar na produção. A prioridade tem sido vender alimentos diretamente ao consumidor, por meio das “feiras da reforma agrária”, que acontecem em 15 cidades do País. As invasões vinham diminuindo desde o governo de Dilma Rousseff e praticamente cessaram com a posse de Jair Bolsonaro, que ameaçou classificar o MST como organização terrorista.
Sobre a acima citada ameaça de Bolsonaro, vale destacar que a Lei Antiterrorismo (Lei Federal 13.260/2016) foi sancionada no governo de Dilma Roussef, no espírito preventivo e repressivo às manifestações públicas de rua, quando da proximidade das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, e abriu forte interpretação para a criminalização de movimentos reivindicatórios, organizados ou espontâneos.
Mais nitidamente, a partir do período dos governos petistas, a radicalidade contestatória e a confrontação aguerrida e ousada ao latifúndio pelo MST foram substituídas pela atenuação de lutas e por rota de acomodação com os espaços de produção e de mercado “diferenciados” que lhes são concedidos.
O quadro é indicativo da força de cooptação ideológica do capital daqueles que se organizam e atuam referenciados em posições afastadas do horizonte estratégico revolucionário, portanto, sem centralidade na luta de classes e, por fim, acabam por se satisfazer com mitigações absolutamente insuficientes para o soterramento do abismo social brasileiro. É o caso de movimentos populares e organizações sindicais que referenciam suas ações no progressismo ou no liberalismo de esquerda, hegemonicamente representado no domesticado petismo, com eficaz capacidade influenciadora nos demais partidos proclamados como de esquerda. Nesses casos, estão dadas as limitadas perspectivas e os riscos de se tornar presa fácil das armadilhas que levam ações, lutas, programas e objetivos radicalizados para a dócil transmutação pequeno-burguesa.
A retomada da luta pela reforma agrária, priorizando o combate ao latifúndio, em enfrentamento à propriedade privada capitalista do solo brasileiro, é um passo fundamental para conquistas da classe trabalhadora. Da mesma forma, é necessária a apropriação, pelos trabalhadores, dos avanços tecnológicos, da consequente capacidade produtiva e de formas de produção racionais e planificadas para que se revertam em benefícios à própria classe trabalhadora no campo e na cidade, para além de uma produção agrícola à mercê dos comandos do capital ou meramente de demandas do mercado internacional. A competência organizativa historicamente já demonstrada pelo MST e outros movimentos de luta pela terra são emblemas de que esse necessário combate é possível, de forma persistente e determinada, desde que associado ao objetivo da superação capitalista.