O “Fora Bolsonaro” ganhou as ruas do Brasil nos dias 29 de maio e 19 de junho. Após um período considerável de apatia do movimento de rua, é impossível não constatar o caráter de massa das manifestações contra o presidente. Uma ampla insatisfação acumulada e represada durante mais de um ano foi finalmente liberada, sendo possível afirmar que viveremos um período de constante mobilização de rua e polarização social, que deve se estender, no atual formato, no mínimo até as eleições de 2022. Diante disso, torna-se imperativo desvendar qual a natureza de classes e o conteúdo político em disputa nas mobilizações de rua e, diante disso, apontar a mais exata medida da tática dos revolucionários neste processo.
Para isso, antes de avançarmos na avaliação do conteúdo político do “Fora Bolsonaro”, é preciso compreendermos a real natureza do governo do atual presidente. Compreender, portanto, a unidade entre a gênese e estrutura do governo Bolsonaro.
O “mudar tudo que está aí”: conteúdo revolucionário sem forma revolucionária
Lembrando Lenin, “não é possível compreender os acontecimentos da revolução russa e a sucessão de suas formas políticas, se não se estuda a essência desses acontecimentos e dessa sucessão de formas através da estatística das greves” [1]; assim tampouco conseguimos compreender o desenvolvimento das lutas de classes no Brasil sem o exame histórico dos ciclos grevistas como substrato dos fenômenos de ascensão e refluxo do movimento operário.
Das grandes greves de metalúrgicos do final dos anos 1970 – justamente a vanguarda operária brasileira naquele momento –, o país atravessaria um longo período de elevado número de greves, que se prolongaria durante toda a década de 1980 e se encerraria apenas em 1996. Essas greves, ao mobilizarem milhões de trabalhadores anualmente, enfrentando diretamente o processo de exploração do capital, foram a principal força que influenciou o conteúdo do movimento de rua da chamada redemocratização. Tanto a construção do Partido dos Trabalhadores (1980) e da CUT (1983) – que permanecem até hoje influenciando os rumos de importantes setores do sindicalismo e do movimento popular brasileiro – quanto o caráter “social” da Constituição de 1988, foram fortemente marcados por esse período grevista, que impôs a pauta dos trabalhadores à hegemonia democrática do movimento.
Entretanto, se o ciclo de ascensão grevista teve a força de ser decisivo para derrubar a ditadura militar, ele não pôde deixar de se desdobrar sobre as bases econômicas e políticas dos 20 anos anteriores de domínio burguês pela via autocrática. Diante disso, a ascensão da luta de classes ficou restrita aos limites políticos da própria oposição consentida pela ditadura. Se, de um lado, as forças revolucionárias do pré-64 foram quase que completamente desarticuladas – especialmente entre 1968 e 1973 na fase de terrorismo de Estado da ditadura –, de outro, o reformismo católico e o marxismo (ou antimarxismo) acadêmico, ambos de forte composição social pequeno-burguesa, tiveram, relativamente, muito mais liberdade para se desenvolver no próprio interior do período ditatorial. Na medida em que defendiam apenas a luta contra o atraso e o “autoritarismo”, ou seja, sem confrontar radicalmente com os interesses burgueses em sua fase imperialista, constituíram um discurso “de esquerda” aceitável a nova ordem mundial que se anunciava já nos idos da década de 1970.
Por isso mesmo, no momento de fundação do PT, se a organização de um partido com forte composição operária e com influência de massa poderia ter sido um avanço efetivo da luta de classes, dialeticamente, esse suposto avanço, por ser imediatamente hegemonizado pelo reformismo católico e pelo antimarxismo acadêmico, representou a construção de uma enorme barreira ao avanço revolucionário do movimento operário. Desde o início, portanto, conviveu dentro do PT a contradição entre o caráter de classe do partido e a ideia da democracia como valor universal, contradição que iria se aguçar a cada eleição, sempre em detrimento do primeiro polo em favor do segundo.
Não por acaso, rapidamente, em todos os momentos em que o movimento grevista recuava, abria-se o espaço necessário para o avanço do caráter pequeno-burguês do PT. Esvaziava-se o conteúdo operário de sua origem e, em substituição, conduzia-se ao centro a pauta democrática e republicana burguesa. Em suma, afirmava-se na prática o conteúdo da estratégia democrático-popular, que conduziu aceleradamente o movimento operário à subordinação ao terreno do cretinismo parlamentar.
Tal cenário se consolidou definitivamente após 1997. Justamente na esteira da aprovação do Plano Real em 1993, a hiperinflação era combatida via valorização cambial; abertura comercial e especialização exportadora da economia; centralização de capital e desnacionalização da propriedade do capital; e um continuado processo de reestruturação produtiva com retirada de direitos trabalhistas e sociais. Tal quadro só não redundou em explosão grevista por conta da contenção dos preços (governo FHC) e do longo ciclo de expansão da economia exportadora, que acabou por propiciar o excedente necessário para hipertrofiar o crédito ao consumo para parcelas expressivas da classe trabalhadora (governo Lula).
Com isso, a quebra do dinamismo e intensidade das greves do período anterior – que se dava na luta pela recomposição dos salários destruídos pela inflação – somou-se de maneira acachapante à cooptação política das direções petistas e à repressão do Estado burguês – jurídica e militar – às poucas direções sindicais que ainda se mantinham combativas. Consolidavam-se as bases para o início de um longo período de estabilidade da economia dependente e de recuo da luta de classes no Brasil, o que aparece nitidamente no baixo número de greves entre 1997 e 2011.
Com isso, encerrou-se o ciclo de ascensão da luta de classes iniciado no fim da década de 1970, sendo este incapaz de construir as bases para a retomada da revolução brasileira. A chamada transição democrática foi completada reafirmando-se todas as bases econômicas que a ditadura construiu, sem qualquer mudança significativa, a não ser nas formas superficiais de domínio burguês. Passou-se de um regime autocrático para o democrático-burguês, ainda que sob forma restringida. Aliás, a própria manutenção das Forças Armadas como poder moderador da república, com seu processo de formação de oficiais de modo não subordinado ao poder civil, permaneceu intocado, o que contribui decisivamente para entendermos os desdobramentos atuais da conjuntura brasileira.
Nesses anos, apesar do recuo do movimento operário, não faltaram momentos pontuais de agitação política. Momentos sempre hegemonizados pelas camadas médias de composição pequeno-burguesa, especialmente diante dos impactos causados pelo Plano Real no achatamento das camadas médias assalariadas e pequeno burguesas – processo que, fruto da centralização de capital promovida pela liberalização dos fluxos de capital, continua de forma acentuada até os dias de hoje. Nos momentos de crise mais aguda do capital, radicalizava-se a pauta dessa camada média contra o governo de ocasião, dando força à oposição eleitoralmente constituída e concentrando a polarização da nova república em torno da oposição entre tucanos e petistas.
Lembremos que as camadas médias não têm interesse, por si mesmas, em ruptura revolucionária com o regime de dominação burguesa. Seu horizonte político está sempre, geração após geração, em transição entre a defesa do sistema capitalista – geralmente nos momentos de expansão econômica e fortalecimento dos pequenos negócios – e o ataque abstrato aos aspectos superficiais do sistema nos momentos de crise – onde vigora a centralização de capital e a falência dos pequenos negócios. Portanto, a crítica das camadas médias ao sistema sempre se resume aos ditames da ordem, buscando substituir um governo por outro, sem nunca tocar na própria estrutura capitalista da dominação, da qual é beneficiária.
Assim, diante da ausência de uma participação efetiva do movimento operário no movimento de massas a partir de 1997 – o que aparece na redução considerável do número de greves do período – essas camadas médias oscilaram entre a adesão aos tucanos (desde o “sucesso” do Plano Real até a crise da dívida pública em 1999) e a adesão aos petistas, a partir da crise de 1999. Formou-se um longo período de estabilidade democrática burguesa, onde ambos os partidos da ordem alternaram-se como forças dominantes no Executivo, administrando os esquemas de cooptação do parlamento para levar à frente o mesmo programa econômico de contrarreformas e privatizações permanentes.
Este quadro de oposição entre tucanos e petistas dentro dos limites da democracia-burguesa representativa só foi revertido, de forma brusca, a partir da modificação profunda do cenário econômico internacional que favorecia a economia exportadora, justamente na virada de 2011 para 2012 [2]. Dessa forma, a reversão do quadro econômico que favoreceu a economia capitalista dependente brasileira impactou fortemente o governo de Dilma, que se iniciou justamente em 2010. Com a queda dos preços internacionais, o impacto nas margens de lucro do capital monopolista foi imediato. Por isso mesmo, começa uma ofensiva dos capitalistas contra os salários dos trabalhadores, especialmente nos setores estratégicos para a acumulação, concentrados na indústria de transformação. Como resultado do ataque contra os salários, ressurgem com força as greves no cenário nacional.
Entretanto, como não poderia deixar de ser em um quadro de desarmamento ideológico da classe trabalhadora, com suas direções políticas cooptadas pela ordem, as greves adquiriram caráter eminentemente defensivo e pautas exclusivamente econômicas. Greves estas que visaram essencialmente conter a retirada de direitos trabalhistas nos próprios locais de trabalho (como salários atrasados, não pagamento de 13º e retirada ou reajustes nos valores de planos de saúde, vale alimentação e vale transporte). Cenário totalmente diferente dos anos 80, onde as greves tinham caráter ofensivo e forte componente político – eram acompanhadas pela pauta da redemocratização e da conquista dos próprios direitos de organização da classe.
De qualquer maneira, a luta de classes no Brasil, diante dos efeitos da crise capitalista, retomou seu dinamismo, contando novamente com a participação central do movimento operário. Em paralelo e ao mesmo tempo que as greves se intensificavam nos locais de trabalho, também as manifestações de rua ganhavam as cidades do Brasil. Foi nessa agitação promovida pela crise capitalista que o próprio junho de 2013 ocorreu, além das manifestações de rua que se desenrolaram no país nos anos seguintes. Por isso mesmo, o sentido geral da ascensão da luta de classes iniciada em 2012 foi o de “mudar tudo que está aí”.
Radical em seu conteúdo e despolitizada em sua forma, essa pauta é a expressão da contradição fundamental do período. “Mudar tudo que está aí”, se levado a termo científico, implica na destruição das relações capitalistas e na afirmação do próprio caráter socialista da revolução brasileira. Entretanto, esse conteúdo revolucionário, ao não conseguir se constituir enquanto partido político e ganhar forma organizada e racional, acabou limitando-se a cumprir um papel destrutivo em relação às velhas formas organizativas da classe trabalhadora brasileira, justamente essas portadoras de todo o entulho ideológico pequeno-burguês construído desde a chamada redemocratização.
Em suma, a história cumpriu seu papel progressivo de destruir as formas pretéritas. Tudo que era sólido, se desmanchou no ar. Entretanto, sem um acúmulo de forças anterior no interior do movimento operário, o ciclo de ascensão da luta de classes de 2012 até 2018 não conseguiu produzir, sobre as ruínas do passado, uma fase construtiva, onde a decadência visível do PT não encontrou uma tradução na construção de um partido revolucionário de composição operária e influência de massas.
De um lado, as greves defensivas foram derrotadas pelos seus limites inerentes, jogando em descrédito as direções sindicais, especialmente a CUT. Para isso, o capital utilizou basicamente três expedientes: as novas tecnologias de exploração da força de trabalho e a substituição de trabalhadores por máquinas; o aumento do desemprego e a ampliação da concorrência no interior da classe trabalhadora; e o uso do Estado como peça de desarticulação da luta operária.
Em primeiro lugar, um novo ciclo de importação de novas tecnologias de exploração da força de trabalho, as quais se convencionou chamar de “uberização” foram implantadas progressivamente no Brasil a partir de 2012. Essas, ao aumentarem significativamente a taxa de exploração, “liberaram” força de trabalho e fizeram aumentar o desemprego. Em segundo lugar, a própria presidente Dilma aplicou um ajuste fiscal de caráter recessivo logo após sua reeleição em 2014, retirando direitos trabalhistas e cortando drasticamente investimentos públicos, o que ampliou sobremaneira a taxa de desemprego no Brasil calculada pelo IBGE – o salto foi de em torno de 4,5% no início de 2015 para mais de 12% ao final do mesmo ano. Por fim, as greves se defrontaram com uma clara ofensiva do judiciário, sendo que a lei que regula o “direito de greve” foi utilizada de forma ostensiva no sentido de, em tempos recordes, decretar qualquer greve como ilegal e aplicar multas milionárias aos sindicatos que de fato cumpriram sua tarefa de dirigir as greves.
Como não poderia deixar de ocorrer, a experiência grevista cumpriu o papel histórico possível e progressivo diante de uma direção política alinhada aos interesses da classe exploradora: a classe operária, no auge do ciclo grevista, rompeu decididamente seus vínculos com a CUT e o PT. Frações consideráveis da classe trabalhadora apoiaram o impeachment de Dilma, ou ao menos não se mobilizaram de forma contrária. Para completar o quadro, no ano do impeachment, o PT foi amplamente derrotado nas eleições municipais, com destaque para as derrotas acachapantes justamente nas cidades de forte composição operária. Em suma, um partido da ordem e uma central sindical hegemonizada por direções pelegas, diante da ascensão da luta de classes que veio para “mudar tudo que está aí”, foram atingidos em cheio, perdendo significativamente sua força política diante das parcelas mais organizadas da classe trabalhadora.
Já nas manifestações de rua do período, também o governo do PT cumpriria seu papel de polícia de choque da burguesia. Como será possível esquecer as ações do governo Dilma no sentido de reprimir as manifestações e, por outro lado, a aprovação da nova lei de organizações criminosas e da lei antiterrorista? Diante disso, o PT assinava leis que caçaram direitos democráticos de organização política e que impactaram nas organizações que embrionariamente se desenvolviam em meio às manifestações de rua. Aqueles que acusam acertadamente o juiz Sergio Moro e a Lava-Jato por desrespeitar princípios legais republicanos ao colocar os petistas nos bancos dos réus, são hipócritas ao ocultar que foi o próprio governo do PT que assinou as leis que permitiram a podridão do judiciário brasileiro atuar de forma desinibida em sua cruzada moral.
Com isso, também a juventude que foi às ruas não encontrou uma tradução política partidária que desse forma ao conteúdo revolucionário de sua reivindicação. Entretanto, nada foi construído do ponto de vista político-organizativo para superar dialeticamente tal momento de destruição e transformá-lo em fase construtiva, inserindo a juventude em um necessário “espírito de partido” e retirando-a da influência degenerativa das ideologias burguesas e pequeno-burguesas.
Não por acaso, diante de um conteúdo revolucionário que não conseguiu ganhar forma revolucionária, justamente no momento que a classe operária recua em sua luta – as greves começam a perder força a partir da virada de 2017 para 2018 – abre-se espaço para o surgimento das forças contrarrevolucionárias. “Mudar tudo que está aí” passou a ser o mote da campanha do Messias Bolsonaro desde 2015, vários anos antes das eleições de 2018. O capitão degenerado correu o Brasil pregando sua palavra, sustentado justamente pela estrutura militar do país – aquela que não sofreu nenhuma transformação na suposta transição democrática –, por organizações de pequenos empresários – tal qual as Câmaras de Dirigentes Lojistas – e por parcela das igrejas neopentecostais, dominadas pelos pastores mercadores da fé.
Assim, desde 2015, vem se desenvolvendo o embrião de algo muito mais profundo que a vitória eleitoral de Bolsonaro, que, por sua vez, é um fenômeno conjuntural e efêmero. O que está em desenvolvimento é a própria formação de um partido militar no Brasil, com enraizamento popular em setores da pequena burguesia e do lumpemproletariado, plenamente alinhado aos interesses do imperialismo dos EUA e que se posiciona como reserva política racional e consciente da contrarrevolução que também se desenvolve embrionariamente no esteio da degradação das condições de vida do povo brasileiro.
Tal desenvolvimento ainda embrionário dessa reserva da contrarrevolução contou com o caminho pavimentado por todo tipo de ilusões com a ordem democrática-burguesa. Em primeiro lugar, se apresentaram no próprio processo de impeachment de Dilma, onde vigorou todo tipo de crença ingênua em relação à “força das instituições democráticas e republicanas”. Depois, com o impeachment consumado e com as centrais sindicais de volta à luta, as ilusões em torno da expectativa pela eleição de Lula em 2018 cumpriu o papel de desmobilizar a forte manifestação operária do primeiro semestre de 2017, que havia culminado com a massiva e fundamental greve geral de abril contra a reforma da previdência.
Chegava-se ao auge do ciclo de ascensão das greves iniciado em 2012, no entanto, sem ainda encontrar forças para avançar no sentido da construção de uma nova vanguarda política que superasse as ilusões liberais burguesas em torno da república parlamentar. A desmobilização da ampla agitação política que construiu greve geral, por sua vez, foi a pá de cal da ascensão do movimento operário. Desgastado após quase uma década de derrotas econômicas, totalmente descrente nos sindicatos e nos partidos de esquerda – assim como nos partidos tradicionais de direita – o ano de 2018 estaria livre para o sprint final da campanha de Bolsonaro. Armado com o potente, mesmo que hipócrita e mentiroso, discurso de “mudar tudo que está aí”, diante de uma classe operária desorganizada e descrente, encontrou guarida para sua vitória eleitoral.
Assim, as ilusões liberais, durante quase uma década de ascensão da luta de classes e retomada da revolução brasileira, pavimentaram o caminho para o desenvolvimento da contrarrevolução como força política que se organiza no Brasil. A eleição de Bolsonaro, em meio à queda verificada na estatística de greves – a partir de 2017 vemos as greves caírem sistematicamente até números reduzidos em 2020 – representa uma nova fase da luta de classes. E é nessa nova fase, produto dialético da fase anterior que acabamos de analisar, que devemos buscar a particularidade da tática dos revolucionários.
Quadro geral do governo Bolsonaro: uma república de polarização permanente
O “mudar tudo que está aí”, quando não rompe com as relações capitalistas da economia brasileira em crise, permanece como bravata eleitoral. Não por acaso, menos de três anos após a eleição de Bolsonaro, o movimento de rua ressurge e, quando da ausência do auxílio emergencial, a popularidade de Bolsonaro aos olhos da massa da população cai consideravelmente. O presidente, desde a campanha, deixava claro que não mudaria em nada o programa econômico liberal que comanda o Brasil. Tanto foi assim que buscou em Paulo Guedes, um Chicago Boy com passagens pelo Chile de Pinochet, o seu “posto Ipiranga” – o guia para tudo relacionado à economia.
Paulo Guedes assumiu o novo Ministério da Economia, um ultraministério que passou a reunir os antigos Ministérios da Fazenda; Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; Indústria, Comércio Exterior e Serviços; e Trabalho. Em suma, o comando de todas as áreas essenciais no que tange a essência das relações capitalistas de produção e distribuição. Assim, o núcleo fundamental da dominação burguesa permaneceu intocado, a despeito de qualquer bravata que o presidente pudesse encampar.
Nessa toada, continuaram as contrarreformas (vide a aprovação das profundas mudanças previdenciárias em 2019), as privatizações e as medidas de facilitação da liberalização e desnacionalização ainda maior da economia. Em paralelo a isso, Paulo Guedes promoveu uma maior centralização da política econômica nas mãos do Executivo Federal, amarrando subsídios fiscais para o grande capital que antes eram negociados via parlamento e promovendo mudanças legislativas que utilizaram das renegociações de dívidas com estados e municípios – todos em profunda crise financeira – para impor congelamentos salariais e ampliação da destruição das carreiras públicas de norte a sul do país.
Em resumo, ampliação das medidas contrárias à classe trabalhadora e favoráveis ao grande capital alinhado ao imperialismo – inclusive com estímulo à falência da pequena burguesia e de setores incapazes de competir internacionalmente – e maior centralização da política econômica e, portanto, do poder, nas mãos do Executivo comandado por Bolsonaro.
Como resultado, atingimos o ano de 2021 com ampliação da precariedade do mercado de trabalho, desemprego em patamar cada vez mais alto, crescimento galopante dos preços básicos e, como sintoma de tudo isso, explosão da pobreza e da fome. Além disso, contamos com um empobrecimento nunca antes verificado das camadas médias urbanas, onde a juventude inserida no sistema educacional é a mais atingida em termos relativos – vide a ausência de perspectiva de emprego e o corte sistemático de recursos para a educação que afetam especialmente as bolsas de estudo.
Tudo isso faz do governo de Bolsonaro uma continuidade do projeto liberal que é hegemônico no Brasil desde a chamada redemocratização. Entretanto, um projeto que se defrontou com uma severa crise após o último ciclo de ascensão da luta de classes e, para permanecer intocado em seus aspectos essenciais, precisou mudar sua forma política. Não há mais como manter a dominação burguesa no Brasil sem o recurso à polarização política. Por isso mesmo, o governo que hoje comanda o projeto da burguesia necessita manter o tensionamento cotidiano com as instituições republicanas, ao mesmo tempo em que convive com elas e está condicionado por elas.
Assim, a política de Bolsonaro é constantemente contraditória. Ao mesmo tempo que faz um discurso de oposição ao STF, ao parlamento, à mídia monopolista e aos governadores, tenta fortalecer a si mesmo dentro destas instituições. Indicou Nunes Marques ao STF e já anuncia que indicará um novo Ministro “terrivelmente evangélico”, trabalhou para eleger Arthur Lira como presidente da câmara dos deputados, fortalece SBT e Record em oposição à Rede Globo e à Folha e prepara seus candidatos para a disputa aos governos estaduais em 2022.
De outro lado, no que tange à conquista de base popular, o presidente faz um discurso direcionado para ampliar a organicidade do seu núcleo de apoio. Polariza discursivamente com as instituições republicanas e adota um tom farsesco e pirotécnico em torno de pautas totalmente secundárias no campo da disputa moral, sempre com a finalidade de ampliar sua força no interior das camadas sociais degradadas pela crise. Assim, tem demonstrado firme apoio entre setores militares – especialmente as baixas patentes –, evangélicos neopentecostais e pequenos burgueses decadentes, dando passos importantes no fortalecimento do projeto, ainda não concluído, de formar um partido militar como expressão mais bem determinada da contrarrevolução que permanece sem forma definida.
E é nesse conjunto de contradições que Bolsonaro, mesmo avançando em seu projeto, encontrou o primeiro limite significativo ao projeto que ele atualmente representa. Primeiramente, seu governo não resolveu, e nem pode resolver, o abismo social que se aprofunda com a crise, já que a continuidade do projeto liberal impede qualquer melhoria nesse sentido. Em segundo lugar, o descontrole da pandemia no Brasil, que se acentuou dramaticamente desde o final de 2020, fez com que o país atingisse a terrível marca de quase 500 mil mortos. Por fim, sua estratégia em torno da “imunidade de rebanho”, adotada já no início da pandemia como mais uma peça do seu discurso farsesco e pirotécnico, voltou-se contra ele a partir do momento em que foram desenvolvidas vacinas de combate à Covid-19. Com isso, gestaram-se as condições para a reorganização e fortalecimento do bloco democrático burguês tradicional, que estava enfraquecido por conta do último ciclo de ascensão da luta de classes e de sua derrota nas eleições de 2018. Com isso, na primeira “fraquejada” de Bolsonaro, intensificou-se a artilharia contra o presidente, que culminou na autorização do STF para a criação da CPI parlamentar que hoje fornece ainda mais munição para Rede Globo e Folha atirarem.
Desta forma, desenvolveu-se uma cisão ainda mais evidente na expressão política da classe dominante brasileira, ainda que ela permaneça completamente unificada em torno da continuidade do projeto liberal. Lembrando que ainda não estamos diante de uma dualidade de poderes ou qualquer outra coisa semelhante; estamos apenas diante do novo formato do regime republicano brasileiro, de polarização constante no âmbito da representação política para manter o sistema republicano parlamentar vivo em sua tarefa essencial de preservar a unidade e o avanço liberal no terreno da economia.
Tal tarefa de manter a república polarizada apenas em seu aspecto superficial é facilitada pela própria exaustão momentânea do movimento operário. A queda no número de greves desde 2017 é evidente, chegando ao patamar reduzido de apenas 638 greves em 2020. Não se trata, com isso, de uma derrota da classe trabalhadora, mas apenas da exaustão do ciclo anterior que ficou restrito às guerrilhas defensivas e economicistas. Quando o ciclo ganhou caráter ofensivo e político nas manifestações do primeiro semestre de 2017, enfrentou o limite ainda não superado das velhas burocracias sindical e partidária oportunistas, em grande medida vinculadas ao PT. Ou seja, a falência não é do movimento operário, que permanece acumulando as contradições da intensificação da exploração da força de trabalho, mas sim de suas antigas direções incapacitadas para darem o salto qualitativo no sentido da luta política revolucionária.
Nesse quadro é que devemos entender a fritura de Sérgio Moro e a retomada dos direitos políticos de Lula. Ao contrário dos sentimentos filisteus de uma esquerda que quer ser a consciência crítica do lulismo, imaginando de forma oportunista que pode pressionar por uma “guinada à esquerda do PT”, o ex-presidente acertou quando se entregou à prisão. Lula é a expressão mais bem-acabada da ordem liberal tradicional pós redemocratização, a única liderança política nacional que conseguiu levar em frente o projeto liberal e, ao mesmo tempo, cooptar o movimento operário e popular. Diante disso, ter se entregue à prisão foi uma manobra para reforçar sua docilidade aos olhos do grande capital, tornando-se a principal carta do sistema para se opor a Bolsonaro mantendo a coesão do projeto liberal. Carta essa que, não por acaso, foi utilizada estrategicamente no momento de maior desgaste político do atual presidente.
Diante disso, a ilusão dos partidos de esquerda de que o apoio a Lula para o pleito de 2022 é a única maneira de deter Bolsonaro deriva da sua incapacidade de ultrapassar os limites do liberalismo e de enxergar na conjuntura atual uma manifestação específica da luta de classes. Do contrário, perceberiam que a tão aclamada luta da democracia contra o fascismo, da civilização contra a barbárie, não passa da aparência ideológica que assume a contradição entre as duas formas de dominação burguesa a serem mobilizadas a depender do grau de radicalização das classes subalternas.
A esquerda liberal, dessa forma, tampouco percebe que, a depender deste grau de radicalização, o seu apoio à restauração da ordem liberal tradicional joga para o colo da contrarrevolução a radicalidade das massas trabalhadoras. Em suma, falha em ver a possibilidade de que a alternativa revolucionária seja a única efetivamente capaz de derrotar Bolsonaro e a tendência autoritária que ele representa.
Assim chegamos ao quadro político que serve de base para a atual ascensão do movimento de rua, que deve permanecer no atual formato até, no mínimo, as eleições de 2022: a polarização da república burguesa comprimida aos limites da ordem liberal. Diante desse quadro, cabe agora responder qual o conteúdo das manifestações e as forças políticas que disputam seu sentido, buscando compreender o quadro para a medida exata da ação política dos revolucionários.
As manifestações de rua no Brasil
As contradições da sociedade brasileira e o desgaste de Bolsonaro reavivaram o movimento de rua no Brasil, tendo sua primeira expressão nas manifestações do dia 29 de maio. As manifestações foram massivas, envolvendo capitais e cidades médias, tendo como palavra de ordem hegemônica o “Fora Bolsonaro”. Demonstraram que se consolidou uma base popular contrária ao presidente que assegura a continuidade dos atos nos próximos meses.
A importância decisiva das manifestações de massa nas ruas é retirar a centralidade política do confortável teatro institucional sintetizado na CPI contra Bolsonaro. Ali é o terreno ideal para o sistema político tradicional desgastar Bolsonaro preparando um melhor posicionamento para as eleições de 2022, mantendo intocado o projeto liberal. Tanto foi assim que todos os cogitados como presidenciáveis do velho sistema político – Lula, Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite e outros mais – calaram ou se opuseram aos atos. A argumentação hipócrita é uma só: as manifestações promoveriam aglomerações que jogam em descrédito as críticas a Bolsonaro em relação ao combate à pandemia. Tal argumentação, evidentemente, não tem qualquer sustentação diante de uma massa de trabalhadores que se aglomera cotidianamente nos locais de trabalho e no transporte público.
Diante disso, quanto maiores, mais intensos e melhor organizados os atos, mais problemas serão criados tanto para o governo de Bolsonaro quanto, ao mesmo tempo, para a recomposição da velha institucionalidade tradicional. Entretanto, diante do refluxo conjuntural do movimento operário iniciado em 2017, o conteúdo político dos atos já está, de antemão, muito bem definido, não podendo ser alterado pela inserção mais ou menos qualificada dos revolucionários nas manifestações. Claramente dominado pelas camadas médias urbanas, especialmente a juventude e trabalhadores do serviço público, sem a existência de um partido revolucionário de influência de massas, a população que vai às ruas já demonstra a sua subordinação à hegemonia das pautas democráticas burguesas.
Longe de um conteúdo operário e revolucionário que ataque o projeto liberal, o que vemos é o tema supraclassista da vacinação – pauta que também tem apoio do grande capital – e a crítica despolitizada contra a pobreza, enclausurada à mera reivindicação pelo auxílio emergencial de R$ 600 – pauta que também não desagrada o grande capital, pois mantém a pobreza no âmbito controlado da política social focalizada receitada pelo FMI.
Com isso, notamos uma tendência da canalização do ímpeto de luta que aparece nas ruas para o terreno de excelência da disputa democrática burguesa: as eleições de 2022. Aliás, a similaridade da composição social dos atos de 29 de maio e 19 de junho é praticamente completa com os atos pelo “Ele não” nas vésperas das eleições de 2018, demonstrando o evidente limite da luta de rua desprovida de conteúdo operário e revolucionário. O aspecto positivo é não percebermos nenhuma palavra de ordem que reverbere com o clamor pelo “volta Lula”. O movimento “Ele não” ainda não se converteu, e nem tende a se converter antes da abertura do processo eleitoral do ano que vem, em um “Ele sim”.
As próprias manobras de Lula para se manter totalmente no interior do campo institucional asseguram que ele não tenha qualquer capacidade e nem interesse em influenciar diretamente nos rumos dos atos. Os atos, mesmo que mantenham conteúdo democrático burguês, pela sua própria existência, trazem à luz e problematizam as alianças políticas feitas na escuridão dos bastidores pela cúpula petista. O próprio silêncio de Lula sobre os atos foi totalmente constrangedor para os militantes petistas da base, que foram colocados na posição defensiva de terem que explicar o motivo do sumiço. Muitos, inclusive, tiveram que, constrangidos, assumir a verdade: Lula quer se manter como candidato viável para uma aliança com o grande capital, em busca de um vice que represente a elite econômica local em sua aliança com o imperialismo.
Entretanto, isso não significa que Lula não estará no comando de forças significativas na disputa pela direção dos atos democráticos. O bloco sob direção do ex-presidente hoje é representado pela Frente Brasil Popular, composta essencialmente pela CUT e pelo MST e, se dependesse apenas do desejo dessa Frente, a orientação seria a de esvaziar os atos de rua através da sua substituição por abaixo assinados, petições e outras artimanhas para jogar o foco da disputa para o terreno impotente das ilusões eleitorais. Entretanto, diante da dinâmica própria das manifestações que se tornaram incontroláveis pelas burocracias, os dirigentes deste bloco estarão ativamente engajados na organização dos atos, com a tarefa fundamental de levantar a bandeira do Lula 2022, reforçando a pauta despolitizada que hoje ainda é hegemônica e, se surgir a possibilidade, desarticular as manifestações.
Do seu lado, encontra-se a Frente Povo Sem Medo, criada em meio ao processo de impeachment de Dilma e liderada desde sua origem pelo MTST de Guilherme Boulos – mesmo que conte com várias outras organizações em seu interior. Esta Frente, se no início tentava manter a aparente independência ao projeto petista, desde as eleições de 2018 encontra-se em trajetória acelerada de incorporação aberta ao projeto liberal de Lula. Em parceria com a direção majoritária do PSOL, Boulos opera uma estratégia de tentar ser a reserva do petismo, mantendo todas as ilusões do projeto liberal – lembremos que nas eleições à prefeitura de São Paulo, Boulos defendeu as organizações sociais (formas de privatização e precarização do serviço público) e foi apoiado por manifesto de empresários no segundo turno –, mas guardando o prestígio da imagem de liderança do movimento de massas. Por isso mesmo, a tática da Frente Povo Sem Medo nos atos de rua passou a ser a de simular radicalidade em discursos espremidos e diluídos pela pauta despolitizada que lhe define os contornos. Já nos bastidores, empenham apoio a Lula e o protegem do desgaste de ser cobrado por não se posicionar ativamente em favor dos atos. Em suma, Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo, ao contrário das ilusões que embalaram seu momento de criação – muito se falou que elas seriam o embrião de superação do atual sistema partidário – hoje atuam apenas como a força de recomposição da ordem parlamentar burguesa liderada por Lula e pelo PT.
Diante do nítido processo de cooptação ao projeto petista, algumas forças que antes compunham a Frente Povo Sem Medo acabaram por se desvincular da unidade construída em torno dela. Tal processo de desacoplamento tem relação direta com a disputa pela direção do PSOL entre o movimento de Boulos e das correntes majoritárias de um lado, e, de outro, correntes internas do partido e organizações externas a ele que se opõem a tática de apoio a Lula no primeiro turno de 2022. Em 23 de maio, lançou-se o “Manifesto Povo na Rua”, assinado por algumas correntes de oposição do PSOL capitaneadas pelo MES, além de partidos como o PCB e a UP. A pauta do manifesto difere muito pouco do colocado pela Frente Povo Sem Medo, sendo levemente mais avançada no sentido de adicionar elementos de interesse da classe trabalhadora na convocatória geral e, principalmente, apontar para um Fora Bolsonaro “imediato”. No entanto, o que de fato justifica essa nova frente é sua vinculação à pré-candidatura presidencial de Glauber Braga no interior do PSOL – que também assina o manifesto. O claro objetivo dessa manobra é lutar contra o fortalecimento da direção que está se construindo em torno de Lula para as eleições de 2022, no entanto, sem apontar o limite do conteúdo democrático burguês das atuais mobilizações de rua e, portanto, mantendo a despolitização geral que começa a deitar raízes sobre as manifestações.
Por fim, um conjunto de organizações de caráter revolucionário também compõem os atos. Algumas delas, inclusive, compõem a Frente Povo na Rua, ainda que como forças minoritárias. No entanto, a capacidade de incidência de massa dessas forças é ainda muito pequena, tendo sua margem de ação constrangida não apenas pelo seu tamanho reduzido, mas, principalmente, pelo próprio conteúdo das manifestações. Diante disso, compreendido o quadro geral das manifestações de rua, cabe agora avaliarmos qual a real medida da ação tática dos revolucionários, sempre tendo em vista a articulação de todas nossas ações com a estratégia da revolução brasileira.
A medida da ação tática dos revolucionários no movimento de rua
Em primeiro lugar, os revolucionários não podem aceitar acriticamente o atual conteúdo do movimento de massa que se inaugurou no dia 29 de maio. Sabemos que o movimento é produto das contradições gestadas pela crise capitalista que não podem ser resolvidas por Bolsonaro, entretanto, não há que se depositar nenhuma confiança de que Lula ou qualquer outro governante da ordem possam resolver tal quadro em favor da classe trabalhadora. Assim, se os revolucionários devem se movimentar ativamente na convocação dos atos contra Bolsonaro, já que este é a atual faceta da embrionária contrarrevolução que se desenvolve no país, não podem se iludir de que o combate à contrarrevolução se dará pelo fortalecimento da ordem republicana vigente. Por isso, nosso “Fora Bolsonaro” tem que ser para já, sem nenhuma concessão às ilusões eleitorais de 2022.
Com isso, não queremos afirmar que uma derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022 não seja importante. Entretanto, se Bolsonaro é uma força da contrarrevolução e não apenas uma força eleitoral, sua derrota nas eleições não significa, de maneira alguma, sua derrota enquanto força política. Um retorno de Lula ou qualquer outro liberal que dê continuidade ao programa econômico da classe dominante irá aprofundar a degradação das condições de vida da população brasileira. Com isso, Bolsonaro pode se tornar ainda mais perigoso na oposição, continuando seu processo de organização do partido militar, encontrando o terreno ainda melhor pavimentado por uma nova experiência desastrosa de um representante do velho sistema político no governo.
Por outro lado, beira a imbecilidade aqueles que afirmam que Bolsonaro já está morto para as eleições presidenciais do ano que vem. Ainda faltando mais de um ano para as eleições, sendo que o tema da vacinação, ao que tudo indica, deve ser resolvido antes do primeiro semestre de 2022, o atual presidente resolveria a primeira pauta da reivindicação das ruas. Para além disso, por meio de ampliação do endividamento público, o presidente poderá, já desde o início do ano que vem e sem nenhuma dificuldade, hipertrofiar uma nova forma de auxílio emergencial aos mais pobres e também conceder reajustes salariais aos servidores públicos. Os ingênuos que só analisam pesquisas de opinião talvez esqueçam que Bolsonaro hoje pilota o Executivo, ou seja, uma máquina de envergadura e enraizamento nacional que pode, facilmente, ser ativada em ano eleitoral, mesmo que a crise econômica seja gravíssima, e garantir o apoio circunstancial da extrema pobreza e de setores despolitizados das camadas médias. Por isso mesmo, o presidente não tem nenhum pudor em continuar com seus discursos que tencionam com a institucionalidade, já que estes cumprem o papel de manter articulado seu grupo orgânico, deixando para o ano que vem a tradicional cooptação econômica por meio do Executivo.
Assim, se os revolucionários não podem ter ilusões em torno do conteúdo e das pautas das manifestações, qual seu papel?
É preciso ter clareza de que sem um salto qualitativo, uma escalada para um patamar superior de lutas, as demonstrações avulsas de fim de semana – na medida em que não resultam em nenhuma conquista, em que não evoluem para novas formas de ação, e em que não ensejam uma maior organização da classe trabalhadora – resultam na frustração das massas mobilizadas e na desmoralização das forças de esquerda. As demonstrações de rua representam o impulso mais modesto de mobilização e animação para a luta das massas. Se por detrás delas não houver uma disposição de encarar meios mais contundentes de luta, toda a energia despendida terá como resultado final, inevitavelmente, mais um período de desmobilização e descrença na política das ruas, e um retorno da crença resignada na forma parlamentar como único meio de fazer política.
Por sua própria lógica interna, as manifestações devem ultrapassar a sua forma inicial, devem desenvolver novos modos de organização e ação; e se as direções deixarem passar o momento de instigar esse desenvolvimento, essa agudização da luta – mas, ao contrário, insistirem apenas na repetição monótona das mesmas consignas, dos mesmos desfiles – todo um período fértil de lutas pode ser desperdiçado. Por certo, as direções não têm o poder de despertar nas massas uma disposição de luta que elas já não tragam de forma latente consigo; este é um dado objetivo resultante da própria conjuntura. Não obstante, as direções têm o dever de apontar o caminho para a evolução do movimento, de vocalizar a possibilidade encasulada na ação inicial, e, se o caminho apontado for congruente com o nível de consciência dos trabalhadores e com sua disposição de ânimo, a possibilidade se torna realidade efetiva.
Sendo assim, além de apontar claramente os limites e armadilhas do processo em marcha, explicando pacientemente, para todos que estiverem dispostos a escutar, a função dos revolucionários seria de duas naturezas. Em primeiro lugar, atuar decididamente nas manifestações, se possível, dirigindo-as. Entretanto, sempre estabelecendo uma diferenciação muito clara com relação à cooptação ao simples eleitoralismo democrático. Tal tarefa é fundamental, já que nosso grande risco nesse processo de ascensão das manifestações de rua é sermos confundidos com aqueles que, vencidas as eleições de 2022, jogarão em ainda maior descrédito a luta dos trabalhadores e pavimentarão com lajotas ainda mais sólidas o caminho da contrarrevolução.
Em segundo lugar, devemos lutar em busca de alterar o conteúdo das manifestações através da incorporação da pauta da classe operária ao centro do debate. Isso acontece em duas medidas. De um lado, distribuindo ao máximo panfletos, textos de análise e outros materiais que esclareçam a necessidade de que as manifestações de rua ganhem conteúdo operário, chegando, no limite, a apontar a necessidade da construção da greve geral – única forma de luta que pode, de fato, derrubar Bolsonaro pelas mãos da classe trabalhadora. Com isso, podemos ganhar para nossa perspectiva os elementos mais consequentes que participarão das manifestações – sejam estudantes, servidores públicos, profissionais liberais, etc. –, retirando-os da influência liberal que tantos equívocos acarretam à consciência de classe. De outro lado, e ainda mais importante, é levarmos o “Fora Bolsonaro” para as assembleias das categorias de trabalhadores de que fazemos parte. Nesse sentido, é preciso avançar na construção da greve política, onde se aproveite da visibilidade pública do “Fora Bolsonaro” como uma alavanca para vincular as reivindicações econômicas particulares de cada categoria com o processo político mais amplo.
Por um partido revolucionário da classe trabalhadora
Na ausência de um partido socialista em que a classe trabalhadora possa dar uma forma revolucionária ao conteúdo antissistema de seus protestos, a atual conjuntura nos exige um esforço consciente no sentido de confluir esse impulso para a mudança radical com a formulação e a organização capazes de lhe dar consequência e abrir caminho para a criação do partido revolucionário dos trabalhadores. Obviamente, sabemos que, diante da hegemonia liberal atualmente constituída, a correlação de forças é desfavorável para os revolucionários. Por isso mesmo, a ação revolucionária apenas será bem-sucedida se auxiliar no acúmulo de forças organizadas em favor da revolução brasileira.
Em primeiro lugar, para mudar, de fato, tudo o que está aí, este impulso difuso e quase instintivo dos trabalhadores, embora já radical, precisa encontrar uma formulação científica e ser elevado assim a uma consciência nítida das condições materiais, objetivas e subjetivas, a partir das quais a transformação da sociedade pode ser projetada de forma realista com base em uma estratégia concreta. Em suma, o que é conteúdo revolucionário precisa vir a ser também forma revolucionária; e o que é ímpeto irrefletido, precisa vir a ser consciência socialista.
Dissemos que o conteúdo revolucionário, na ausência de uma formulação consequente do ímpeto de transformação radical da classe trabalhadora, isto é, na ausência de um partido político capaz de catalisar este impulso inicial em um programa de transição socialista, fora em grande parte absorvido pelo campo político de direita e, sob a direção da burguesia, adquiriu um sentido contrarrevolucionário. Portanto, a fim de resgatar o sentido revolucionário para as manifestações de massa, se faz imprescindível que os socialistas travem uma implacável luta ideológica contra as influências burguesas no seio das forças de esquerda.
Sem a teoria revolucionária, as lutas econômicas se restringem à mera luta sindical pelos interesses materiais mais imediatos dos trabalhadores, e a luta política se restringe à luta eleitoral e parlamentar dos partidos institucionais; ambas separadas uma da outra. É ela, portanto, o fundamento capaz de centralizar, no momento de intensificação das lutas de classes, as pautas econômicas e políticas em um movimento unificado dos trabalhadores. É precisamente este o principal problema das manifestações pelo “Fora Bolsonaro”, e o principal desafio dos revolucionários na atual conjuntura.
Em segundo lugar, contudo, é evidente que a formação do partido revolucionário não pode ser senão produto do amadurecimento da classe trabalhadora, da sua consciência de classe e de seu nível de organização, no próprio processo de suas lutas contra a classe dominante e o Estado burguês. Por outro lado, é também evidente que esse amadurecimento pode ser acelerado a partir de uma ação política orientada pela perspectiva revolucionária, aproveitando toda e qualquer movimentação contestatória da classe trabalhadora, com a finalidade de nela incutir o espírito de uma ampla compreensão da luta de classes e de suas tarefas socialistas.
Logo, em um período de refluxo das lutas operárias como o que vivemos, não podemos alimentar a ilusão de que, por sua própria vontade, os revolucionários podem criar um partido proletário e socialista. Por isso, precisamos fazer desse refluxo algo qualitativamente diferente: a preparação de uma contraofensiva do proletariado. Apenas pela veiculação periódica da literatura socialista entre os trabalhadores, e a discussão ativa e cotidiana dessa mesma literatura em espaços de formação e ação política – sem a exclusão, por óbvio, da agitação e propaganda nos locais de trabalho e estudo quando da ocasião de debates, assembleias, manifestações, de forma tanto mais intensa nos momentos de ascensão das lutas populares –, em suma, apenas ao fim de um período de laboriosa atividade militante conscientemente dirigida para este propósito, prepararemos essa contraofensiva, e, por certo, na esteira de uma nova ascensão do movimento operário e das greves de massa, pode o partido revolucionário emergir como produto das lutas de classes.
Não se trata aqui de esperar o momento oportuno, mas de construí-lo ativamente junto aos trabalhadores. Colocar a revolução na ordem do dia não é proclamar o seu advento para amanhã, mas projetar a partir de hoje os passos práticos para a sua realização. Se a revolução, para os revolucionários, é um problema do momento presente, então o nosso objetivo estratégico mínimo na atual conjuntura deve ser, em toda e qualquer manifestação de luta da classe trabalhadora, canalizar a disposição de ânimo e o acúmulo organizativo dos trabalhadores para a formação do partido revolucionário.